Em 1997 entrevistei para o jornal "Terras da Beira" o músico Sérgio Godinho.
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Sérgio Godinho é um músico raro: a uma generosa e vincada personalidade (humana e artística) alia também um desejo voraz em perscrutar a realidade, os sons e a vida, num processo estético que só pode desembocar na criação de canções imersas num lirismo contagiante. Discurso sóbrio e honesto, postura humilde mas desconcertante, são alguns ingredientes revelados nesta entrevista a um dos últimos grandes «escritores de canções» portugueses.
Já tens uma longa carreira cimentada à custa de muito empenho e porventura de alguns dissabores. É para ti mais fácil olhar com nostalgia para o passado do que encarar a incerteza do futuro?
Eu acho que as duas coisas se complementam naturalmente, porque nunca reneguei o passado e tudo aquilo que fiz acaba por me alimentar para o futuro. Eu não sou revivalista a não ser que projecte esse revivalismo para o futuro porque, acima de tudo, sou uma pessoa do momento presente e se as minhas canções antigas continuam a fazer sentido, eu canto-as naturalmente.
E essa noção de «sentido» das canções vem do público?
Não, para mim vem da coerência poética e musical da própria canção e de sentir que a mesma funcionou. É evidente que o «feedback» do público em relação a determinadas canções também acaba por me influenciar e me estimular num certo sentido ou noutro, até porque não sou imune à receptividade do público visto que, estar no palco, é um espectáculo de comunicação, de trocas, de estímulos.
Analisando sob o prisma do presente, que importância outorgas à chamada «canção de intervenção política» que marcou a tua geração desde os finais dos anos 60?
Penso que isso sempre existiu e é uma das componentes da canção que é importante, no sentido de olhar para a sociedade e ver o que está bem e o que está mal e falar naturalmente disso. Eu sempre integrei nas minhas canções - nalguns discos e nalgumas alturas - um certo conteúdo sócio-político que eu acho importante existir. Penso é que o termo «intervenção» é um termo redutor e que só por si não explica grande coisa. O rap é um estilo contemporâneo que também expressa uma preocupação sócio-política...
É por isso que tens colaborado com jovens músicos ligados ao rap e ao hip-hop?
Sim, de certa forma sinto-me próximo dessa linguagem: a maneira como eu largo a frase, aproveito as frases ritmicamente e o facto de partir de uma base musical - quando estou a compor uma canção - para depois encontrar palavras que tenham essa consonante rítmica constitui, para mim, algo de muito próximo ao rap; não faço rap puro, obviamente, mas há de vez em quando coisas que faço que têm a ver com o universo rap. Acontece é que eu sou um «melodista» e o rap não vive muito da melodia.
As tuas experiências artísticas no estrangeiro, com o «Living Theatre» e com a ópera rock «Hair», contribuíram de certa forma para a consolidação da tua veia estética, enquanto músico?
Sim, absolutamente. Ambas as experiências foram diferentes: o meu primeiro contacto com o «Living Theatre» foi em Paris e depois fui em digressão para o Brasil acabando por ser preso devido ao radicalismo estético e à atitude anarquista preconizada por esta companhia, e acabei por me confrontar com essas experiências radicais e alternativas. Eu sempre me senti atraído por ideias anarquistas, quer na estética quer ao nível político. No caso do «Hair», era uma comédia musical integrada numa corrente da «Broadway» e foi nesse momento decisivo que eu aprendi a estar à vontade no palco, encarando-o como se fosse a minha casa.
Essas ideias anarquistas de que falaste tornaram-se numa forma de vida?
De certo modo sim, na medida em que tenho sobretudo uma liberdade e uma independência ferozes que eu sempre conservei e que procuro prosseguir e mostrar. Seria incapaz de pertencer a um partido político tendo em conta que a ideologia anarquista recusa ideias políticas sejam de esquerda sejam de direita. A anarquia representa para mim uma forma de lucidez, de independência, é como que uma escolha de actuação perante a vida.
És um músico que dás bastante importância à palavra e à poesia. A música deve-se subalternizar relativamente à palavra?
Não, nas minhas canções uma coisa não vive sem a outra: as minhas palavras ficariam muito empobrecidas se não tivessem um suporte musical e vice-versa. Mas se tivesse que me definir, diria que sou essencialmente um músico apesar de jogar com o universo poético, com uma estilística que é poética e de ser um apaixonado pelas palavras; agora, o que eu gosto é de as ver dançar ao som da música!
E a inovação na música far-se-á pela descoberta de novos domínios da palavra?
Quando falo na palavra tenho também de falar na frase, que é a maneira como as palavras são compostas, assim como dinâmicas que a música cria para as frases. Em cada frase há uma musicalidade própria e tenho por hábito registar a maneira como as pessoas falam no quotidiano, dando atenção ao ritmo, à cadência, à melodia, podendo haver nesta matéria o véu para a descoberta de novas formas de expressão musical. Existem frases e palavras quotidianas que, deslocadas para um determinado contexto musical, se tornam insólitas e criativas, numa espécie de «ready-made».
Propunha-te um desafio: a uma palavra tu respondes com um comentário breve de uma frase.
Vamos ver.
Concerto.
É o sumo mais doce e mais rico que posso beber como músico.
Zeca Afonso.
Foi quem abriu janelas onde nem paredes havia.
Giacometti.
Salvou a música portuguesa (talvez sem saber).
Rock.
É um dos lados de mim.
Paris.
Foi o Maio de ’68 e o «Hair»: o ponto dourado das experiências no estrangeiro.
Poema.
É aquilo que se está sempre a reinventar nas formas e na lírica.
Pimba.
Mau gosto instituído: é um abastardamento de formas musicais pelo menor denominador comum.
Sucesso.
É uma coisa relativa, efémera e que não nos pode nunca ofuscar.
Inspiração.
É uma borboleta que pode ou não pousar nos nossos ombros
Sérgio Godinho.
Espero poder pousar durante muito tempo, levemente, como uma borboleta, na sensibilidade das outras pessoas.
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