sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Raiva à Sexta-feira


Há alguma coisa mais irritante à Sexta-feira do que comprar o Público e constatar, depois de ter pago e de ter saído do respectivo quiosque, que este jornal não traz o suplemento de cultura Ípsilon?! Nos últimos meses é a terceira vez que tal me acontece. Deverei protestar junto de quem? Dos distribuidores de jornais? Do Belmiro de Azevedo? Do Procurador Geral da República? Do Vasco Pulido Valente? A próxima vez que me acontecer isto, juro que passo a ler o 24Horas.

(brincadeirinha)

Top 2007 - a vez dos portugueses

Depois do top internacional, este é o meu top 10 nacional:

1 - Lobster: “Sexually Transmitted Electricity”
2 - DOPO: “For the Entrance of the Sun”
3 - Tropa Macaca: “Marfim”
4 - Norberto Lobo: “Mudar de Bina”
5 - Old Jerusalem: The Temple Bell
6 - JP Simões: “1970”
7 - Wraygunn: “Shangri-La”
8 - Hipnótica: “New Communities For Better Days”
9 - Micro Audio Waves: “Odd Size Baggage”
10 - Bernardo Sassetti: “Dúvida”

Nota: na imagem, Lobster.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Top 2007


Após muita cogitação, está efectuada a eleição dos meus melhores discos internacionais de 2007. Como sempre, trata-se de uma lista ecléctica e abrangente: rock, experimental, fusão, world, electrónica, pop (e ainda assim ficaram uns bons discos de fora):

1 - Amon Tobin: “Foley Room”
2 - Battles: “Mirrored”
3 - Einstürzende Neubauten: “Alles Wieder Offen”
4 - Gogol Bordello: “Super Taranta!”
5 - Original Silence: “The First Original Silence”
6 - Black Dice: “Load Blown”
7- Tomahawk: “Anonymous”
8 - Pan Sonic: “Katodivaihe/Cathodephrase”
9 - Burial: “Untrue”
10 - Liars: “Liars”
11 - Young Gods: “Super Ready/Fragmente”
12 - Arcade Fire: “Neon Bible”
13 - Balkana Beat Box: “Nu Med”
14 - Tango Saloon: “Tango Saloon”
15 - Murcof: “Cosmos”
16 - Fanfare Ciocarlia: “Queens and Kings”
17 - LCD Soundsystem: “Sound of Silver”
18 - Beirut: “The Flying club Cup”
19 - Venetian Snares: “My Downfall”
20 - Tinariwen: “Aman Iman”
21 - Radiohead – “In Rainbows”
22 - Neurosis: “Given to the Rising”
23 - Devendra Banhart: “Smokey Rolls Down Thunder Canyon”
24 - M.I.A.: “Kala”
25 - Map of Africa: “Map of Africa”
Nota: na foto, os Battles.

The Shining - comédia familiar?


No mundo virtual onde todas as possibilidades virtuais são possíveis, eis que, à semelhança do filme "Eraserhead", também o clássico de terror "The Shining" de Stanley Kubrick é alvo de uma remontagem/reinterpretação para servir de proposta cinematográfica aparentada com comédia familiar. O efeito é ainda melhor conseguido do que com o filme de David Lynch.

Admiração & respeito - 4


Gilles Lipovetsky - filósofo, escritor

Música para Bugs Bunny & Comp.ª

A música para cartoons (“desenhos animados”, dizia-se quando era miúdo) é uma arte. Uma arte exigente. Warner Bros e os seus Lonney Tunes foram preponderantes com a introdução de personagens icónicas como Bugs Bunny, Coyote, Daffy Duck, Speedy Gonzales, Sylvester the Cat, Road Runner, entre outros. A época de ouro destes filmes de animação foi nas décadas de 30 a 50. Enquanto Walt Disney filmava filmes politicamente correctos, de grande apelo aos valores familiares, a Warner Bros. arrasava com a irreverência visual e o ritmo alucinado da acção resultante da imaginação dos maiores realizadores de cartoons: Chuck Jones e Tex Avery. A música para estes filmes era constituída de uma precisão cirúrgica tremendamente eficaz, na qual a sonoplastia (gravada em estúdios caseiros e com objectos quotidianos) era totalmente síncrona com cada imagem. As bandas sonoras, frenéticas e imparáveis, muitas das vezes subvertendo a estética dos compositores clássicos estabelecidos, eram pequenas obras-primas de composição, de rebeldia formal e de criatividade sonora. Os grandes mestres da música para cartoons foram Spike Jones, Carl Stalling e Raymond Scott, autênticos génios de originalidade musical, extravasando o próprio conceito exíguo de “música para cartoons”. A música para cartoons exerce um enorme fascínio, não só nos adultos mas também nas crianças (ou será que a ordem é inversa?). O próprio guru da música avantgarde, John Zorn, é um fã dos compositores acima referidos.

Lá fora – é sempre lá fora – existe uma literatura interessante sobre esta temática da música para cartoons, da qual destaco o livro que encabeça este post. A prova de que a música de cartoons é um assunto sério e de reconhecida identidade artística.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Tim Burton vs.Sweeney Todd

Pernas abertas e Camus


O filme tem o título português "Cenas de Natureza Sexual" (2006) e é realizado por um desconhecido Ed Blum, numa produção britânica independente. Os actores cobraram um cachet simbólico e o filme vive muito à conta do argumento. Teve uma estreia nacional discretíssima. Mas vale a pena deitar-lhe os olhos em DVD. A história aborda as questões eternas do amor, do sexo, da felicidade e da (in)fidelidade. Tópicos que fazem lembrar um determinado realizador... Ah! Woody Allen, claro. "Cenas de Natureza Sexual" não tem a desenvoltura prodigiosa e a inteligência melodramática das comédias existencialistas do autor de "Hannah e Suas Irmãs", mas acaba por não envergonhar a profissão de argumentista. Com um subtil humor (por vezes cínico) na abordagem dos temas em questão, com interpretações muito razoáveis e uma realização segura, o filme vive e respira encantamento.
O filme passa-se quase todo num parque público, no pico do Verão. Encontros e desencontros de pessoas comuns com desejos comuns, terrenos e imediatos. A menina do cartaz do filme está a ler um livro. Pose atrevida, pernas lascivas. Ao lado encontra-se um homem que, disfarçadamente, olha obcecado para as... cuecas da adolescente. A mulher repara no olhar insistente do marido e acusa-o: "para onde estavas a olhar?". O marido, embaraçado, responde a balbuciar: "hum, nada de especial, hum, estava a olhar para aquela moça que está a ler um livro interessante". A mulher olha e lê: "L'Etranger", Albert Camus. O marido finge que conhecia o livro, mas na realidade nunca tinha ouvido falar dele.
Repare-se no enquadramento da coisa: uma adolescente, estendida no esplendor da relva, pernas abertas e a ler, no original francês, "O Estrangeiro" de Camus! Ele há ironias da vida que só um argumentista inspirado poderia imaginar

Musicar as imagens


A história da música para cinema é recheda de aspectos interessantes. A introdução do som na linguagem fílmica provocou uma revolução. Técnica e estética. Chaplin resistiu 10 anos ao som, visto que era da opinião que este elemento iria matar a essência do cinema: a imagem. Mas a história comprova que não só não matou como enriqueceu sobremaneira a plasticidade das imagens, auferindo-lhe outra dimensão, outra expressividade. Historicamente, a primeira composição original expressamente feita para um filme foi em 1908, pelo compositor Camille Saint-Saens. Por outro lado, grandes compositores falharam na composição de bandas sonoras para cinema, como foi o caso de Stravinsky, Bartók ou Ravel.

O primeiro filme sonorizado com diálogos é “O Cantor de Jazz” (1927) com Al Jolson (actor branco que interpretava um cantor negro), fruto da introdução do Vitaphone, máquina de projecção com disco acoplado desenvolvido a partir do Fonógrafo de Thomas Edison. No início, a música para cinema era meramente funcional, ilustrativa das imagens. Era uma música programática. Eis que em 1939 se dá uma verdadeira ruptura estética: o génio de Walt Disney realiza “Fantasia”, obra que revolucionou a importância da música no cinema com Schubert, Bach, Tchaikovsky. Com este filme a música passou a ser o veículo narrativo primordial.
É curioso constatar as relações que, ao longo de décadas de história do cinema, se estabeleceram entre realizadores e compositores, estabelecendo assim, afinidades artísticas únicas: Nino Rota com Fellini; Prokofiev com Eisenstein; Bernard Hermann com Hitchcock; John Williams com Spielberg; Michael Nyman com Peter Greenaway; Ennio Morricone com Sergio Leone; Howard Shore com David Cronenberg; Danny Elfman com Tim Burton, etc.

Um das mais espantosas bandas sonoras compostas para cinema, é o filme "Cape Fear" (Cabo do Medo), original de J. Lee Thompson em 1962 e alvo de um brilhante remake de Martin Scorsese em 1991. Veja-se (e ouça-se) este brilhante início de filme na versão adaptada de Scorsese com um genérico do genial Saul Bass (trabalhou com Hitchcock): a cada segundo, a música prenuncia a violência e o mal que perpassa por todo o resto do filme. A música é do grande Bernard Herrmann adaptada por Elmer Bernstein. Aqui.

Admiração & respeito - 3


Mike Patton - músico

Edição DVD do ano



Esta é uma das grandes edições do ano no mercado DVD nacional: 5 filmes do realizador Andrei Tarkovski. A Costa do Castelo já tinha editado (quase todo o catálogo do cineasta de "Stalker", mas todos os títulos a um preço quase proibitivo - entre 30 a 40€!). A Midas Filmes, editora de um ex-sócio da Atalanta, pratica uma política de preços bem mais interessante: 20€ por cada DVD. Para além disso, convém dizer que o resto do catálogo da Midas é de grande qualidade, privilegiando a cinematografia europeia e de autor.
Uma colecção irresistível para quem não conhece a obra deste cineasta metafísico.

O acordeão do Diabo


Kimmo Pohjonen, músico finlandês, actuou há dois anos no Teatro Municipal da Guarda. A entrevista aconteceu como se segue:
O acordeão do “Diabo” (ou da “Besta”) é uma arma arremessada, sem dó nem piedade, contra os incautos espectadores. Vemo-lo e quase sentimos que daquele fole e daquelas teclas saem chamas que só se apagam com a nossa própria sofreguidão de ter mais e mais: texturas embriagantes, melodias perenes, ritmos improváveis em sobressalto. A electrónica é o parente directo do músico, que o ajuda a construir a arquitectura magistral da sua música. O acordeão é um órgão carnal mutante, extensão viva do corpo e da mente. Tal como a voz, rude, grotesca e bela, utilizada como grito expressionista que interpela a nossa consciência. Kimmo Pohjonen vive eternamente insatisfeito. Quer sempre mais, pelo que vive em constante demanda por novas descobertas sensoriais (“todos os dias procuro descobrir sons novos”, confessa). O rigoroso desenho de luz e vídeo de “Animator” é um complemento messiânico da linguagem artística de Kimmo. E assim “Animator”é brilho infinito, visceralidade incontida, energia transbordante sem fim que perdura no espírito do espectador longas horas após o fim da performance. É desta estirpe que é feita a grande arte deste início de milénio. É desta estirpe que é feita a criatividade visionária.

Umas horas antes do espectáculo, marcámos uma entrevista com o músico finlandês. A recepcionista do hotel telefona para o quarto de Pohjonen. Ele responde que desce num minuto. Puro engano. Desceu após 3 minutos e meio. Quem imaginava – como nas fotos – que era um nórdico alto e espadaúdo equivocou-se. Kimmo tem estatura média e ao longe parece até ter metade da idade que, realmente, tem. Parece um teenager saído de uma escola secundária: vestido com casaco de fato de treino cor de laranja, t-shirt verde, calças multicolores e botas Doc Martens vermelhas. Olhando para ele, ninguém imagina quanta criatividade este músico encerra na sua cabeça. Com a sua habitual crista subtil no cabelo, Kimmo volta e enganar-nos quando começa a falar: imaginávamo-lo um homem frio e sério, característica da cultura nórdica. Revela antes humildade e desarmante timidez. Simpático q.b., articula as palavras num inglês com pronúncia nórdica. Ao que parece, há uns anos mal sabia construir uma frase na língua de Shakespeare.

No final do concerto no TMG, Kimmo Pohjonen revelou que foi o final perfeito para a sua digressão em Portugal. E ele sorriu, quase como sinal de consentimento, quando lhe dissemos que a sua música invocava o sagrado. Mas uma pergunta ficou sem resposta no nosso íntimo: será que as 400 pessoas continuarão a ser as mesmas depois de ter visto o acordeonista diabólico (propositadamente sem aspas)?

Qual a sua opinião acerca daquela frase feita que diz que o Kimmo Pohjonen é uma espécie de “Jimi Hendrix do acordeão”?
Eu não alimento muito essa ideia, ainda que compreenda, de certa forma, o porquê da comparação. Foi um qualquer jornalista que achou que havia similitudes entre mim e Hendrix, lançando esta comparação. Mas eu sou eu, tenho o meu próprio percurso e a minha própria linguagem estética, e o Hendrix é o Hendrix. Procuro explorar os sons do meu instrumento e encontrar um caminho original para a minha música…

Tal como Hendrix fez com a guitarra eléctrica.
Exacto. Nessa perspectiva, acabo por considerar que a comparação é positiva e estimulante para mim. Houve uma altura em que me cansei da sonoridade do acordeão, quase desisti de o tocar por não me sentir identificado com ele. Mas depois comecei a explorar os sons inéditos do instrumento e outras portas de experiência se abriram para mim.

Foi nessa altura que sentiu a necessidade de juntar a componente electrónica ao seu instrumento?
Sim, através de amigos meus com quem tocava em antigas bandas. Comecei a desenvolver o interesse pela exploração de efeitos electrónicos. Era algo estranho porque entrava numa loja de música e pedia para experimentar pedais de efeitos e processadores digitais de guitarra no meu acordeão! As pessoas ficavam a olhar para mim como que a perguntar: “quem é este gajo e o que está a fazer?” (risos). Na verdade, não há assim tantos acordeonistas no mundo a utilizar tecnologia electrónica associada a este instrumento acústico.

Utiliza vários acordeãos ou recorre sempre ao mesmo?
Basicamente, utilizo sempre o mesmo acordeão. Acabei por desenvolver microfones especiais de captação e utilizar tecnologia de ponta para potenciar ao máximo as capacidades sonoras do instrumento.

Considera o acordeão como uma espécie de extensão do seu próprio corpo? Qual é a sua relação física e artística com este instrumento?
O acordeão é, de facto, um instrumento muito físico, até pelo seu peso, que pode chegar aos 16 quilos. É também um instrumento de impacto visual, quando o seu fole é esticado e manipulado. Por vezes sinto que é uma parte do meu corpo. Gosto desse contacto físico com o meu instrumento. Eu toco-o de forma muito chegada ao meu corpo e tenho quase um combate físico com ele quando estou em palco.

Ao longo de 20 anos de actividade musical já passou por muitas experiências e géneros: da folk à clássica, do rock à electrónica, música para teatro e multimédia. Porquê esta diversidade de abordagens e em que área se sente mais confortável a trabalhar?
Sempre senti necessidade de tocar em vários projectos simultaneamente, com vista a quebrar a monotonia e o cansaço que só uma banda ou um projecto poderiam provocar. Por isso me dá tanto gozo tocar música improvisada com amigos, como integrar um projecto de música electrónica e a seguir tocar com um quarteto de cordas. É algo natural para mim. Pode ser cansativo ter tantos projectos, mas é assim que eu gosto de encarar a minha actividade artística.

Numa entrevista disse que uma das características principais da sua música é o carácter libertário e independente. Quer explicar?
Eu faço música para mim mesmo, porque sinto necessidade de a fazer e porque gosto do que faço. Sem constrangimentos nem condicionalismos. Não faço música para agradar à audiência. Quero manter-me livre enquanto criador e quando estou em cima do palco. Preservar essa ideia de liberdade é muito importante para mim.
O Kimmo é um músico muito expressivo e intenso, quer a solo, quer em colaboração com outros músicos. A vertente de impacto emocional é, assim, um dos maiores atributos da sua música?
Talvez. Depende de quem me ouve e vê. A música expressa emoções, e esse lado da energia emocional interessa-me bastante. Há pessoas que dizem que o espectáculo mais emotivo em que participei é o Kluster com o Kronos Quartet, outros dizem que é o KTU, outros ainda o “Animator”. Não há consenso e ainda bem. Para mim, todos esses projectos são diferentes e em todos, por igual, me empenhei com a mesma energia.
Falando especificamente do seu projecto “Animator” que serviu de base à sua mini-digressão por diversas cidades portuguesas: é um espectáculo multimédia muito complexo com luzes, vídeos e sons trabalhados ao pormenor. Como foi o processo de criação deste projecto?
Sempre gostei de actuar a solo e sempre me interessei por juntar diversos elementos audiovisuais em palco, num trabalho estético que vai buscar ideias à dança e ao teatro contemporâneo. Por isso quis conceber um espectáculo onde tivesse essa forte componente visual de imagens, luzes e bom som. “Animator” é o resultado dessa combinação, que levou algum tempo a conceber, mas que corresponde às minhas expectativas. Em Helsínquia tive há algum tempo um projecto chamado “Manipulator”, no qual havia manipulação de imagens pela Marita Liulia e durava mais de 6 horas. Foi uma espécie de performance preparatória para “Animator”.

A sua música tem um lado muito imagético. Alguma vez compôs música original para cinema?
Humm, não tanto quanto gostaria. Houve uma curta-metragem realizada em Inglaterra para a qual fiz música, mas não foi um projecto muito ambicioso.

Se pudesse escolher, qual seria o realizador para o qual faria música?
É uma boa pergunta. Nunca pensei nisso, mas é difícil responder. Há tantos bons filmes e realizadores. Talvez Fellini.

Mas Fellini está morto!
Eu sei (risos). Mas acho que o imaginário de Fellini tem algo a ver com a minha música e teria sido fantástico ter podido trabalhar com ele. Quanto a cineastas vivos, talvez escolhesse Polanski. Há também uma série de bons realizadores japoneses…

E qual foi o último grande disco que ouviu recentemente?
Ahh, outra pergunta difícil! (longa pausa). Para mim a música tem de ser entendida como parte de uma grande escala de muitas coisas diferentes. Não me cinjo apenas a um género musical ou a um disco. Há tanta música boa por aí… Por exemplo, a electrónica é um campo muito criativo e no qual estão sempre a acontecer coisas interessantes, como os meus conterrâneos Pan Sonic. No carro estava a ouvir um disco muito interessante de um grupo que faz a fusão entre música do Mali e o jazz, os Kora Jazz Trio. Gosto de discos que tenham a combinação de diversos elementos distintos, seja na world music, no jazz ou na electrónica. Aprecio essa capacidade de certos artistas conceberem a fusão entre sensibilidades estéticas diferentes, da qual podem surgir obras muito interessantes. Mas não posso reduzir a minha resposta a apenas um disco, porque seria demasiado redutor.
Entrevista por Victor Afonso, em Outubro 2005
Publicado no blogue do TMG

Disco do ano


Disco do ano 2007: "Foley Room" - AMON TOBIN
Para quem conhece a obra de Amon Tobin, sabe que ele é um artista raro no panorama musical da última década. Explorador incansável de novas abordagens sonoras, de novos trilhos estéticos para a música electrónica, Amon tem provado o seu impressionante talento criativo com álbuns essenciais como “Bricolage”, "Supermodified”, "Permutation” e “Chaos Theory” (banda sonora para um videojogo). A minúcia quase científica com que trabalha os elementos sonoros (que têm tanta importância como a massa sonora final), a forma cirúrgica como arquitecta o desenvolvimento de um tema e, sobretudo, a inexcedível capacidade criativa ao nível da construção rítmica e de ambiências, fazem de Amon Tobin um dos poucos visionários da música urbana do novo Milénio.

“Foley Room” foi o seu último testemunho deste esteta dos sons (lançado em Março deste ano). É o disco mais conceptual e ambicioso de Amon Tobin: parte do conceito de música concreta (gravação de sons concretos para depois os trabalhar em estúdio) para estilhaçar géneros, referências, abordagens. “Foley Room” é um quarto onde habitualmente se gravam os sons concretos e efeitos sonoros para cinema. Amon pegou nesta ideia e o resultado salta à vista (ao ouvido): aqui há ritmos feitos com rugidos de leão, de ruídos de motor e de gotas a drapejar, há ambientes cinemáticos, ruídos industriais, beats hip-hop transmutados em qualquer coisa nova, há imaginação a rodos, há Kronos Quartet em devaneios com texturas surrealistas, há melodias corais envolventes e hipnotizantes, há tensões e descontracções . Para Amon, Foley Room não é tanto uma sala técnica de investigação e pesquisa sonora. É mais um estado metafórico e mental, é o resultado criativo onde tudo – mas tudo mesmo – pode ser (re)criado, reciclado, reconstruído. É um campo tridimensional onda só há limites para a criatividade. E quando pensamos que já desconfiamos de como irá desenvolver ou terminar um tema, eis que Amon torna a baralhar os dados e nos fulmina, de novo, com a sua incrível capacidade de inovação formal, o seu apuro estilístico referente aos mais ínfimos pormenores. Por isso este é um disco inesgotável, de uma beleza irredutível, de uma pujança estética inaudita, que seduz, que vicia como uma droga, e provoca pele de galinha a cada nova e renovada audição.

Este é o meu disco de 2007, a seguir vêm todos os outros .

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Admiração & respeito - 2


Luíz Pacheco - escritor

Eraserhead - uma comédia romântica?


“Eraserhead” não é um filme. É uma experiência audiovisual e sensorial sem grande concorrência na história do cinema. É um pesadelo expressionista cujo impacto no espectador perdura muito para além do fim do genérico final. Agora que está em exibição em sala, importa recuperar esta primeira longa-metragem de David Lynch, o mestre da bizarria estética e dos universos surreais. Acontece que no inevitável youtube há um (falso) trailer do filme que subverte a essência dramatúrgica desta obra: com música de Simon and Garfunkel, a ideia que perpassa por este trailer é que se trata de uma comédia a estrear no Verão para todas as famílias, incutindo-lhe deliberadamente (ao trailer) um cariz cinematográfico superficial, ligeiro e quase anedótico. Não deixa de ser interessante e… bizarro, constatar que o efeito no espectador menos precavido é alcançado. Não vá é agora um espectador que ainda não tenha visto o filme esperar uma comédia romântica tal como é apresentada neste minuto e meio de trailer!

Trailer aqui.

Admiração & respeito - 1


António Sérgio - radialista

Top 2006 (2007 vem a seguir)


Tal como no outro ano, o portal de música Bodyspace pediu-me uma lista dos melhores discos de 2007. Dentro de dias elaborarei essa dita lista. Entretanto, aqui fica o meu top pessoal dos melhores discos de 2006:

Lista 2006

1: Kode 9 & Spaceape“Memories of the Future”
2: Man Man - “Six Demon Bag”
3: Matmos“The Rose has Teeth in the Mouth of the Beast”
4: Tom Waits“Orphans”
6: Ellen Allien & Apparat“Orchestra of Bubbles”
6: Burial“Burial”
7: Beirut“The Gulag Orkestar”
8: Oneida“happy New Year”
9: Liars“Drum's Not Dead”
10: Mouse on Mars“Varcharz”
11: Wolf Eyes“Human Animal”
12: Messer Chups“Crazy Price”
13: Sparks“Hello Young Lovers”
14: Sonic Youth“Rather Ripped”
15: Coldcut“Sound Mirrors”
16: Les Georges Leningard“Sangue Puro”
17: Zero 7“The Garden”
18: Gnarls Barkley“St. elsewhere”
19: Colleen“Mort au Vaches”
20: Six Organs of Admittance“The Sun Awakens”
21: TV On the Radio“Return to Cookie Mountain”
22: 12 Twelve“L’Univers”
23: Sunn O))) & Boris“Altar”
24: Scott Walker“The Drift”
25: Isis“In The Absence of Truth”

Perspectivas sobre Control


Andava eu à procura de informação no ciberespaço sobre o filme "Control" de Anton Corbijn quando me deparei com um site com domínio .pt e a palavra control. Pensei: deve ser um site de um fã português que criou uma página em homenagem aos Joy Division e ao filme. Acontece que a expectativa nem sempre se concretiza: control
Humm... Ingenuidade ou ignorância minha?

Mais ruído, menos ruído


Os Black Dice reconquistam território perdido. Uma das mais representativas bandas da cena noite/experimental americana (juntamente com Lightning Bolt, Sightings ou Wolf Eyes), regressam neste fim de 2007 com o álbum "Load Blown". Neste novo trabalho, os Black Dice colocaram a tónica experimentalista na electrónica e deixaram para trás a efervescência obtida com a exploração do ruído e da distorção. Continua a haver transgressão e explosões noisy, mas muito mais contidas e regradas. Há ritmos quase dançáveis e composições quase próximas das convenções do formato canção. Uma nova e estimulante viragem estética que em nada compromete a valia artística deste trio de insubmissos músicos de Broolkyn. "Load Blown" será disco para constar nas listas dos melhores de 2007.

Noite e Nevoeiro - uma doçura terrífica


Até que ponto o horror pode ter dimensão estética? De que forma pode o homem interiorizar a aniquilação e continuar a assobiar para o lado? O Holocausto é verbalizável?
“Noite e Nevoeiro”, de Alain Resnais (o mesmo realizador de “Hiroshima, Meu Amor” de 1959), foi o primeiro grande documentário sobre o sistema concentracionário e de extermínio criado pelos nazis, sobre o Genocídio e o Holocausto, sendo considerado um marco na História do Cinema. Este filme realizado em 1955, dez anos apenas após a libertação do campo de extermínio de Auschwitz confirma que nenhuma descrição ou imagem pode dar a verdadeira dimensão dos acontecimentos ocorridos. À altura em que “Noite e Nevoeiro” foi realizado, a erva já tomara conta de Auschwitz: o antigo cenário do horror era uma paisagem verdejante, campestre, serena; a ruína do campo ameaçava já a ruína da memória. Era preciso reavivá-la e, para isso, Resnais intercalou o que ele próprio filmou em Auschwitz com imagens de arquivo captadas pelos aliados no fim da guerra ou pelos alemães e com fotografias comentadas com uma lentidão litúrgica, “uma doçura terrífica”, notou François Truffaut. De resto, este célebre cineasta francês disse uma vez que “Noite e Nevoeiro” era o “melhor filme jamais feito”. O filme tem uma voz off impressiva e directa. É a voz do escritor francês Jean Cayrol, combatente da Resistência Francesa que foi preso político no campo de concentração de Mauthausen (Áustria).

O título, “Noite e Nevoeiro”, é retirado do título do livro de Jean Cayrol, “Poèmes de la Nuit et Brouillard”, que por sua vez retirou a expressão ao nome do decreto alemão “Nacht und Nebel”, que estipulava a deportação para locais secretos de pessoas acusadas de conspirar contra o regime nazi. “Noite e Nevoeiro” rejeita quaisquer formatos convencionais de narrativa histórica; expõe factos em vez de os explicar, revela o horror em vez de o compreender. E mais do que tudo, refuta a exploração fácil do sentimentalismo, do apego à emoção dramática, pelo que a câmara de Resnais filma com uma suavidade inaudita, sem cedências ideológicas ou emocionais. A frieza e a neutralidade com que cada plano-sequência é filmado, revela-se uma agulha espetada no espírito humano, como se Alain Resnais perguntasse a cada espectador: “como foi possível?” O filme foi rodado a cores (presente, 1955) e a preto e branco (imagens de arquivo). É assim que o realizador francês aborda a montagem das imagens com as quais apresenta a sua “visão expiatória” do extermínio dos Judeus. Montagem, manipulação e reconstrução de imagens muitas vezes insustentáveis, que "produzem uma forte impressão de irrealidade que dão uma sensação de vertigem àqueles que têm que fazer este trabalho”, nas próprias palavras de Alain Resnais. O rigor ético e estético deste filme, a música subtil de Hanns Eisler (antigo colaborador de Brecht) e a voz carismática de Cayrol fazem de “Noite e Nevoeiro” uma experiência cinematográfica única, para não falar da inerente importância histórica deste documentário.

sábado, 24 de novembro de 2007

Um filme para a depressão, se faz favor


Em vez de soluções farmacológicas para tratar doenças como depressões, ansiedade, estados obsessivos, paranóias, esquizofrenias, entre outras maleitas da psique, que tal antes ver um...filme? É isso que nos propõe o muito interessante livro "Guia Terapêutico de Cinema", de Pedro Marta Santos (editora Guerra e Paz). O cinema como terapia. Para cada maleita, o autor sugere vários filmes para a debelar. É de leitura extremamente saborosa e viciante porque pode ser levado a sério e a brincar. A cada nova página, aprendemos sempre qualquer coisa de novo em relação a um filme, a um realizador. O autor, nesse aspecto, foi muito talentoso em interligar os diversos temas para escrever um livro inteligente e irreverente como poucos.
Um livro pedagógico e didáctico para amantes do cinema e para doentes do foro psiquiátrico. Ou para ambos. Brilhante.

Chris Cunningham - o videoclip como arte



Na história recente da cultura do videoclip (antigamente desingado teledisco), há cinco ou seis grandes realizadores que deixaram marca autoral: David Fincher (agora realizador de cinema), os conhecidos Spike Jonze e Michel Gondry, Floria Sigismondi (autora do célebre "The Beautiful People" de Marilyn Manson, entre outros), Jonathan Glazer (realizou em 2004 o interessante "Birth" com Nicole Kidman) e Chris Cunningham.

Este último é, para O Homem que Sabia Demasiado, o maior de todos, ainda que a sua produção seja, porventura, menor em quantidade relativamente aos restantes realizadores. Realizou spots publicitários (Playstation, por exmeplo), videoclips para artistas pop mainstream - Madonna e Björk e para seminais projectos da electrónica experimental - Autechre, Aphex Twin, Squarepusher (da editora Warp Records). Para a cultura do audiovisual da década de 90 ficará para sempre esse impressioante documento que é "Come to Daddy" (1997) de Aphex Twin, verdadeiro compêndio simbiótico de negritude estética, cibernética alienada, música libertária e imagens em erupção catatónica. Aprendeu com o mestre: Stanley Kubrick, com quem trabalhou um ano para o projecto nunca concluído "I.A." (posteriormente realizado por Spielberg).

Em 2005, Cunningham realiza uma espécie de sequela de "Come to Daddy", onde um corpo mutante e disforme (reminiscências das mutações genéticas de David Lynch e David Cronenberg) chamada "Rubber Johnny" dança, de forma aterradora, uma polirrítimca música de... Aphex Twin. Já não é propriamente um videoclip com a estrutura convencional, é antes um formato mais ambicioso, próximo da curta-metragem de ficção. E é outro legado insusbtituível da cultura das imagens para a primeira década deste novo milénio.

Last but not least: Chris Cunningham prepara, já há algum tempo, a adaptação para cinema do célebre livro da cultura cibernética "Neuromancer" do guro tecnológico William Gibson. Aguarda-se nada menos do que uma bomba.

Glenn Branca - ruído branco


É um dos músicos mais respeitados dos últimos 30 anos. Figura ímpar da cena musical nova-iorquina de vanguarda, Glenn Branca cilindrou a linguagem rock convencional com as suas sinfonias de guitarras noise nos anos 70, tendo influenciado nomes como Sonic Youth. Entrevista ao músico, directamente de Nova Iorque.

A sua relação com a música começou na segunda metade dos anos 70, com a explosão do movimento No Wave em Nova Iorque e com músicos como Lydia Lunch, Arto Lindsay, Teenage Jesus and the Jerks e Suicide. Olhando para o passado, considera que esse foi um momento importante para a sua evolução musical?
Sim, foi uma surpresa para mim todo esse movimento. Eu vim para Nova Iorque nos anos 70 para fazer teatro e fazia muita música para teatro, mas não tinha perspectivas de fazer carreira como músico. Todavia, sempre quis formar uma banda rock desde que aprendi a tocar guitarra, com os meus 15 anos. Quando cheguei a Nova Iorque estava o movimento punk no auge e foi algo muito excitante para mim. Entretanto, conheci um músico no teatro que também tinha desejo de formar uma banda rock e demos início a uma banda. Foi um processo muito rápido: formámos a banda em poucas semanas, arranjámos concertos e audiência num ápice. Ambos tínhamos interesse em todo o tipo de música experimental, fosse na forma de jazz, de rock ou de música clássica contemporânea.

Na verdade, a sua música nunca se cingiu apenas ao rock. Costuma dizer que o jazz ou compositores contemporâneos minimalistas como La Monte Young ou Philip Glass, foram importantes para si. Como lida com estas referências tão díspares?
Bom, para mim isso nunca constituiu problema. Eu estudei música e nunca senti qualquer estranheza em gostar de diferentes referências musicais. Podia ouvir num minuto os Beatles e os Kings e, no minuto a seguir, Mahler e Penderecki, e depois, Miles Davis ou Brian Eno. Nunca me importei com essas diferenças convencionais entre géneros musicais, o que importava mesmo eram as ideias, a criatividade dos músicos e as experiências estéticas que retirava de cada artista, de cada disco.

Fale um pouco sobre o seu método de composição. Por exemplo, como é que faz para juntar o minimalismo e a “teoria da afinação” de La Monte Young com a energia do rock de guitarras?
Humm... É uma boa pergunta! Eu sempre gostei de música rock intensa e enérgica, e o tipo de compositores contemporâneos que ouvia era gente como Ligeti e Stockhausen. Eram estes os compositores que eu achava serem aqueles que faziam música mais intensa. Fazia sentido eu gostar de música intensa e brutal e deixar-me influenciar por esses compositores que eu gostava de ouvir em casa com o volume bem alto. O tipo de teatro que fazia também comungava dessa intensidade, desse espírito de confrontação estética.

Gosta da palavra experimental para classificar a sua música?
Sim, essa é a palavra que sempre gostei e que sempre usei para caracterizar o meu trabalho desde os anos 70. O movimento No Wave foi um movimento que eu considero ter sido experimental, ainda que mais tarde tenha sido chamado de Art-Rock, uma designação que eu julgo ser terrível e desajustada, até porque era confundida com o rock progressivo inglês que na altura estava também a ter muita aceitação.

Dissonância, consonância e caos são também três conceitos que lhe dizem muito respeito nas suas criações. É um trabalho difícil conjugar estes três tipos de abordagem ao som?
Esse tem sido o grande desafio e a parte interessante da minha actividade musical. Quando me apercebi que podia misturar esses conceitos – algo que eu procurava concretizar de forma consciente e deliberada – conclui que o resultado podia ser muito estimulante e criativo. É um trabalho que compositores clássicos já tentaram fazer há muito tempo, como Mahler, ainda que a dissonância explorada por este compositor não fosse muito proeminente, comparando com a minha abordagem que é bem mais extrema.

Ao longo da sua carreira editou diversas sinfonias pelas quais é mais conhecido. A sua intenção ao usar o termo “sinfonia” vai no sentido de dar outro significado à palavra e de se afastar, deliberadamente, da conotação rock?
Não, eu escrevi sinfonias simplesmente porque queria escrever sinfonias, e foi o que fiz. Não tive qualquer outra intenção, como se depreende das suas palavras.

Contudo, as suas obras foram já interpretadas por sinfonias clássicas como a The London Sinfonietta. Como lida com esta confrontação entre a música dita convencional e os conceitos avantgarde?
Isso nunca foi um problema para mim. Os chamados músicos convencionais estão, na verdade, muito familiarizados com técnicas avantgarde. Aquilo que faço é muito menos avantgarde do que Xenakis, John Cage ou Morton Feldman. Essa transição e conexão entre esses dois universos foi sempre, para mim, natural.

A sua música influenciou muitas bandas importantes do rock dos anos 80, como Sonic Youth ou My Bloody Valentine. Disse numa entrevista recente que já não ouve música rock. Significa que o panorama rock actual já não é suficientemente excitante para si?
Detesto dizer que é verdade. Por vezes ouço uma ou outra banda de que gosto, mas na generalidade não me interessam muita essas bandas que fazem parte de movimentos de moda, acho-as extremamente aborrecidas. Por isso prefiro ouvir coisas como Sonic Youth ou Swans.

Continua a viver e a trabalhar em Nova Iorque. Mesmo depois do 11 de Setembro, esta cidade continua a exercer grande influência e inspiração em si no que diz respeito à parte criativa?
Bom, eu não costumo ser influenciado por acontecimentos. É um erro pensar que a minha música é inspirada pela cidade e seus diversos acontecimentos. A música tem mais a ver com ela própria, não precisa de mais referências para se justificar. A música que escrevo deriva de um processo muito técnico e laborioso, e não tem tanto a ver com conceitos como o mal, a destruição ou o caos. A música que faço tem mais relação com noções de intensidade, consciência e exploração de novas ideias.

Sabia que o seu apelido em português significa “branco”? Por causa disso, um amigo meu costumava chamá-lo de “Glenn White-Noise”, num trocadilho entre o seu nome Branca e um certo noise que pratica.
(risos) Ah! Gosto dessa descrição! Branca é um apelido italiano, e já sabia que significava branco (white), mas esse trocadilho é realmente divertido e, mais importante, apropriado.

Entrevista conduzida por Victor Afonso para a revista Mondo Bizarre.

Documentários políticos: visões e revisões


Num mundo globalizado e massificado pelas tecnologias da informação e comunicação, a realidade social e política toma contornos surpreendentes e cada vez mais imprevisíveis. Essa realidade já não é balizada com base em coordenadas estanques e uniformes: fenómenos globais como o terrorismo, a emigração ilegal, a pobreza, o racismo, os ideais fundamentalistas e radicais, a economia a reboque dos interesses do petróleo, os lobbies, a instabilidade social ou os conflitos étnicos e regionais, provam que o mundo é cada vez mais um mundo descoordenado, instável, inseguro e altamente complexo. Os grandes ideais políticos mobilizadores preconizados por Churchill ou John Kennedy parecem já ineficazes face à complexidade da realidade contemporânea.
Por seu turno, os EUA mantêm - fazendo uso do estatuto de única superpotência mundial - a sua supremacia militar, económica e política face ao resto do mundo. Mas por detrás dessa imagem de potência global, escondem-se segredos políticos que embaraçam a actual Administração Bush. O documentário “O Mundo Segundo Bush” (William Karel, 2004) é um crítico e polémico olhar sobre a presidência americana, as suas controversas políticas internas e externas, nas quais se revelam pormenores pouco conhecidos da administração Bush. Uma assombrosa investigação jornalística que expõe os segredos e mecanismos do poder, através de entrevistas aos protagonistas, detalhes de factos desconhecidos da opinião pública e manipulações de informação sobre temas tão controversos como a invasão do Iraque e as relações entre Bush e os magnatas do petróleo da Arábia Saudita (Bin Laden incluído). Longe da demagogia militante de Michael Moore.
Por outro lado, Robert McNamara, antigo Secretário de Defesa dos EUA dá-nos também uma visão surpreendente dos bastidores políticos do período mais delicado da política externa americana no brilhante documentário "Testemunhos de Guerra ("The Fog of War", 2003). Noutro ponto da barricada, Fidel Castro, resiste até ao fim no seu casulo comunista e anti-imperialista (o documentário "Fidel" de Oliver Stone). Os três documentários políticos (de produção recente)configuram, assim, uma espécie de trilogia surpreendente sobre o universo político mundial menos visível à opinião pública mundial. Para que todos possamos perceber melhor o mundo em que vivemos. Destes três filmes mencionados, o mais pertinente (e o melhor em termos estritamente cinematográficos) é o do premiado realizador Errol Morris. Ganhou o Óscar do melhor documentário de 2003. Trata-se de uma pertinente análise sobre o mandato dos presidentes Kennedy e Johnson, através de uma entrevista contundente do seu Secretário de defesa, o famoso e influente Robert McNamara. “Testemunhos de Guerra” aborda alguns dos factos mais importantes e delicados da história norte-americana dos últimos 40 anos, como o bombardeamento do Japão, a crise dos mísseis de Cuba e a controversa guerra do Vietname, factos que desencadearam consequências sociais, históricas e políticas ainda hoje vividas. Depois, a música original de Philip Glass outorga um cariz mais solene e austero às mensagens veiculadas pelo filme. Perante estes exemplos de intervenção cívica (porque é disso também que é feito um documentário), urge perguntar: quando é que em Portugal haverá algum realizador suficientemente corajoso para engendrar um documentário político que coloque, sem rodeios, o dedo nas feridas desta, aparentemente tácita, democracia representativa?

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

As imagens digitais - hoje e no futuro


Um livro que já foi editado em 2004 mas que se mantém, cada vez mais, actualizado: o fim anunciado da película (celulóide) tal como a conhecemos hoje. A cultura digital e a evolução tecnológica dos últimos anos tem desencadeado canais alternativos de promoção das imagens. A internet e os recursos digitais impõem um novo paradigma de produção e fruição do cinema. Não é por acaso que David Lynch e David Fincher afirmam que nunca mais irão voltar a filmar em suporte de película (após as experiências positivas com câmara de alta definição digital). Este livro de Matt Hanson tenta responder às novas exigências formais, estéticas e técnicas resultantes desta autêntica revolução em curso. Constate-se a pequena revolução que o filme "Beowulf", de Robert Zemeckis, vai trazer à cultura das imagens e ao modo de as percepcionarmos: o nosso olhar face às imagens do ecran voltará a ser o mesmo daqui para a frente?

Ó Shôr Vítor!

A cidade e o veneno


Às vezes é assim que sinto a minha cidade:

I like my town with a little drop of poison
Nobody knows they're lining up to go insane
I'm all alone, I smoke my friends down to the filter
But I feel much cleaner after it rains.


Tom Waits - "Little Drop of Poison" (Álbum "Orphans: Brawlers, Bawlers & Bastards"

Rádio actividade


A rádio portuguesa precisa de um abanão. Precisa de renovar a sua função como meio de comunicação, dado que a internet lhe roubou o protagonismo. Já não se sente o mesmo prazer a ouvir rádio como há 10 ou 15 anos atrás, com programas de autor como os de António Sérgio, Aníbal Cabrita, Rui Morrison, ou Luís Filipe Barros.
A rádio deve livrar-se das convenções e da ditadura das audiências. A formatação generalizada da rádio portugeusa é insolúvel. A letargia criativa e a falta de conhecimentos dos radialistas são notórias. Depois do despedimento do último grande radialista nacional e responsável por alguns dos melhores programas de rádio de autor - António Sérgio, não resta quase ninguém. Em Espanha, o panorama das rádios nacionais é totalmente diferente. Para (muito) melhor. Primeiro, a percentagem de música espanhola que passa nas rádios é significativamente maior do que a de origem anglo-saxónica; segundo, há tanto espaço para divulgar os músicos consagrados como as bandas em início de carreira, com um notável empenho e interesse por parte das rádios. Os programas de rádios espanhóis de autor não se limitam a passar música para preencher o éter hertziano. São criteriosos, informados, esclarecidos, actualizados, cultos, com conhecimentos de música.
Ou seja, atributos que não fazem parte da maior parte dos animadores de rádio nacionais (salvo honrosas excepções, todas da Antena 2 e 3). É claro que os espanhóis têm dois defeitos que os portugueses se orgulham de não ter: têm péssima pronúncia inglesa e falam frequentemente no meio das músicas (mas estes dois pormenores são menores comparados com as características positivas acima referidas). A Radio 3 espanhola, emissora de serviço público, tem programas de grande qualidade, num horário consecutivo - de manhã à noite. Podemos ouvir world music, jazz, rock experimental, electrónica, flamenco, debates sobre livros e arte, etc. Um exemplo a seguir pelos responsáveis portugueses das rádios.

A fé ensinada às criancinhas


Os EUA estão a viver um período complexo no que concerne à educação e ao paradigma de valores a incutir nas novas gerações. Por incrível que pareça, em pleno Século XXI, há muitos milhões de americanos que acreditam na corrente Criacionista da vida, isto é, uma corrente que interpreta à letra os postulados da Bíblia. Significa isto que os defensores do Criacionismo defendem a ideia de que o homem descende de Adão e Eva, que conviveu com os dinossauros e que o Dilúvio existiu mesmo, entre outros delírios romanceados como estes. Na prática, refutam todas as evoluções científicas e teóricas conseguidas pelo homem durante o século XIX e XX, como a teoria da Evolução das Espécies de Charles Darwin e todas as conquistas técnicas e tecnológicas. Em contraposição, o Evolucionismo é uma teoria científica fundamentada em achados fósseis concretos ou em experiências bio-genéticas realizadas, enquanto que o Criacionismo é abstracto, indemonstrável e desprovido de bases científicas. E o que tem este livro, “O Fim da Fé”, a ver com tudo isto? Tem a ver porque ataca toda a religião conotada com o Criacionismo, todo o tipo de manifestação religiosa, como causas dos males do mundo.
Na verdade, Sam Harris escreveu um dos mais violentos ataques contra os paradigmas religiosos, sejam de tendências extremistas ou moderadas. Defende que a razão e a ciência são as únicas estruturas basilares que sustentam a evolução da humanidade e que o terrorismo e se baseia na má interpretação da fé. “O Fim da Fé” (lançado pela Tinta da China), reclama o direito do homem a ser um pensador livre, sem amarras de dogmas infundados definidos em escrituras milenares e aponta a fé como a mais infame e fantasiosa forma de entender a vida humana. Na linha de outros cientistas ateus como Richard Dawkins (que editou recentemente o livro “A Desilusão de Deus”, Casa das Letras), Sam Harris é um intelectual que ousa derrubar tabus numa sociedade que parece cada vez mais prisioneira de dogmas, fundamentalismos e efabulações pseudo-religiosas.
www.samharris.org

Da violência estilizada


O tema da violência no cinema é um tema recorrente e polémico desde as primeiras experiências com imagens em movimento. Há estudos académicos e livros teóricos que abordam ao detalhe a relação entre a violência e a imagem. 1971 foi um ano particularmente fértil na produção de filmes sobre a violência: “Dirty Harry” de Don Siegel (com o implacável polícia interpretado por Clint Eastwood), “A Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick (um dos realizadores que mais explorou a violência das imagens) e “Straw Dogs – Cães de Palha” do mestre Sam Peckinpah. Os dois últimos filmes foram banidos e censurados ao longo de décadas, inclusive, em países ditos liberais como a Inglaterra e os EUA pela sua violência explícita e estilizada. “Cães de Palha” é um impressionante manifesto sobre a violência, sem moralismos facciosos. É a história de um homem comum, um perturbante Dustin Hoffman, que vai viver para o campo com a sua mulher no intuito de encontrar sossego para o seu trabalho. Acontece que a partir de dado momento, os habitantes da aldeia invadem o território do casal e inicia-se uma incrível espiral de violência gráfica e realista (como a sequência da violação, à data altamente polémica e inusual). É também um filme sobre como um cidadão comum reage sob extrema pressão psicológica face a situações de brutal adversidade. Um estudo sobre o lado negro da mente humana. Sam Peckinpah, decididamente, foi o cineasta que mais influenciou realizadores como Quentin Tarantino ou Robert Rodriguez, não só como este filme, mas também com aquele que realizou dois anos antes: "A Quadrilha Selvagem", o western ultra-violento que "acabou com a mitologia nobre da tradição do western", nas palavras de John Wayne.

Sylvia - Palavras no abismo


Sylvia Plath é um nome relativamente desconhecido do mundo das letras. Nasceu em 1932 nos EUA e viveu pouco, tendo-se suicidado em 1963 (asfixiada pelo gás de cozinha em sua casa enquanto os seus dois filhos dormiam). Foi uma das principais revelações literárias americanas do século XX, uma força poética rara e muito intensa. Escreveu compulsivamente poemas que versavam, direta ou indiretamente, sobre os seus tormentos existenciais e a sua agonia interior, sobre os limites extremos da alma que lambiam o delírio e a loucura. Muito de sua obra refere-se à morte, como no poema "Lady Lazarus", um dos mais emblemáticos e lembrados por críticos e estudiosos: "Morrer é uma arte, como tudo o mais. Nisso sou excepcional". Há um filme biográfico da Sylvia Plath - "Sylvia - Paixão Além das Palavras", com a actriz Gwyneth Paltrow a interpretar o papel da poetisa. No mercado nacional, há uma preciosa edição da Assírio & Alvim que compila os seus poemas - "A Câmpanula de Vidro".

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

A Era tecnológica em ebulição


Em 2002, o realizador Godfrey Reggio e o músico Philip Glass (em colaboração com o reputado violoncelista Yo-Yo Ma), fecharam a trilogia “QATSI” com chave de ouro: “Naqoyqatsi – A Guerra Como Forma de Vida”. Não é tão impactante como o primeido filme da série -"Koyaanisqatsi", mas é um documento audiovisual que deixa o espectador estarrecido. O filme, sem narração nem história convencional, recai sobre a temática da turbulência social e cultural existente na sociedade globalizada e tecnológica do Século XXI.

A consolidação da era do computador e da electrónica impuseram-se como paradigmas culturais e sociais (quase) inabaláveis, influenciando o nosso modo de vida em todos os aspectos: media, artes, política, desporto, entretenimento, comunicação, medicina, cultura, publicidade, etc. A violência tecnológica, é, segundo o ponto de vista político do realizador, o mal civilizacional do nosso tempo, configurando uma crítica social pós-moderna.

Reggio mostra-nos um mundo saturado de imagens pré-fabricadas, fruto da sociedade hiper-acelerada e materialista, uma sociedade onde a Natureza foi suplantada pelo advento maciço da tecnologia digital. Estilisticamente, a proposta visual de "Naqoyqatsi" contrasta com os dois filmes anteriores, uma vez que proliferam as imagens digitais manipuladas e os efeitos rebuscados de imagem, em detrimento de imagens reais (numa montagem trepidante que confere a esta obra uma dimensão caleidoscópica verdadeiramente onírica, que estimula os nossos sentidos e a nossa percepção do mundo actual).
Mais info: http://www.naqoy.com/

Pós-Punk?


"Rip It Up & Start Again: PostPunk 1978-1984" do jovem jornalista Simon Reynolds, é o livro definitivo sobre a explosão efervescente do movimento pós-punk. Porventura um dos períodos musicais mais criativos e interessantes dos últimos 30 anos, no qual múltiplos tentáculos estéticos se multiplicaram na Inglaterra e nos EUA. Não é um dicionário ortodoxo, nem um conjunto solto de textos desestruturados. É uma fascinante viagem ao mundo de uma música subversiva e libertária, num registo que tem tanto de jornalístico quanto de literário. Imperdível.

Danny Elfman


É difícil escolher uma banda sonora das muitas que já compôs Danny Elfman. A sua veia criativa parece nunca terminar. Da música do genérico "The Simpsons" às bandas sonoras de filmes da sua alma gémea - Tim Burton - "Eduardo Mãos de Tesoura", "O Estranho Mundo de Jack", "Batman", "Marte Ataca", ou "Big Fish", Elfman é um compositor com uma versatilidade criativa rara, à semelhança dos grandes mestres clássicos de Hollywood - Henry Mancini, Bernard Herrmann, Elmer Bernstein ou Ennio Morricone.

Poesia visual em 56 segundos

Há quem diga que esta é a melhor sequência alguma vez filmada em cinema (plano-sequência, para ser exacto). Faz parte do filme "O Espelho" de Tarkovski. E não é que eu estou tentado a concordar? A Câmara desliza por entre a habitação, sorrateiramente, captando os mais subtis movimentos até se centrar no plano fixo do incêndio. Se não há poesia nestes 56 segundos, não sei onde há.

Andrei Tarkovski - O Escultor do Tempo


Quem é este realizador que é comparado, em dimensão artística, ao escritor Dostoievski? Quem é este cineasta que, em todo o seu percurso cinematográfico, efectuou um intenso mergulho na árdua e intrincada jornada rumo ao autoconhecimento e à mais elevada espiritualidade? Na História do Cinema houve poucos realizadores tão exigentes, inovadores e visionários como o russo Andrei Tarkovski. A sua obra cinematográfica é profundamente original, fruto de uma progressiva maturação artística obtida ao longo de três décadas e da decisiva influência cultural paterna (o pai, Arseni Tarkovski, era um importante poeta russo). No mundo do cinema, talvez se possa citar nomes da mesma estirpe como Ingmar Bergman, Akira Kurosawa, Robert Bresson, Carl Dreyer, Alain Resnais ou Luís Buñuel (Tarkovski admirava todos estes cineastas). Realizou apenas sete filmes (sete obras-primas?) ao longo da sua carreira, apenas sete longas-metragens que constituem a expressão máxima de um dos maiores criadores de imagens da segunda metade do século XX.

Homem de uma cultura erudita e abrangente (pintura, poesia, música, cinema, literatura, geologia), teve muitas dificuldades em trabalhar livremente fruto das pressões censórias das autoridades soviéticas. Por isso se exilou e procurou desenvolver o seu trabalho singular em países como Itália, França ou Suécia. Foi acusado de elitista e austero, mas insistia que eram as crianças que melhor entendiam os seus filmes. O seu cinema é um cinema de permanente confrontação dos sentidos, de depuração espiritual, de um formalismo estético sem paralelo, que pouco tem de entretenimento gratuito; a sua demanda prende-se com a procura do sentido para a arte, para a existência humana, num mundo cada vez menos preocupado com as questões culturais e mais com as questões da sociedade de consumo e do espectáculo. Conceitos como nostalgia, fé, simbolismo, sonho, lirismo, poética, sombra, meditação, arte, tempo, introspecção, mistério, subjectividade, metafísica, misticismo ou memória, são abordados recorrentemente nos filmes de Tarkovski. O cineasta fazia filmes “esculpindo no tempo”.

A sua filmografia é absolutamente ímpar em toda a história do cinema, tendo granjeado inúmeros prémios internacionais (Cannes, Veneza, Berlim): “Andrei Rubliev” (1966), “Solaris” (1972), “Stalker” (1979), “Nostalgia” (1983) ou “Sacrifício” (1986), são testemunhos de uma arte das imagens que deve tanto à pintura como à literatura. A mestria da realização (planos, movimentos de câmara, enquadramentos), a sua mise-en-scène (rigorosa e despojada), a utilização subtil da banda sonora e da sonoplastia (o som como elemento dramático), o soberbo domínio da fotografia (composição plástica da imagem), os argumentos sólidos (diálogos profundos, dramas envolventes), fazem de Tarkovski um autor de rara qualidade artística.

Violent Femmes - Add it up!

Uma guitarra, um baixo, uma tarola de bateria e uma voz meio esganiçada. Eram assim os Violent Femmes no início fulgurante da sua carreira. 1984. Fusão incontrolável de punk, folk, rock. Foi o meu primeiro disco de vinil encomendado de uma distribuidora de Lisboa (seria a Dansa do Som?). Fabuloso.

Martin Rev - Entrevista



Os Suicide foram pioneiros na fusão entre o rock e a electrónica. Martin Rev (electrónica) e Alan Vega (voz) abriram uma ferida profunda na cena punk e pós-punk de Nova Iorque da segunda metade da década de setenta. O álbum homónimo, “Suicide”, lançado em 1977, constituiu a machadada que quebrou a monotonia auto-complacente do punk e revolucionou a estética rock, à base de sons repetitivos e manhosos de um sintetizador velho de Rev e dos devaneios vocais de Vega. Energia, confrontação e revolta sem guitarras eléctricas fizeram do duo um dos mais originais e ousados grupos da música rock. Ainda hoje inúmeros grupos e músicos reclamam o imenso legado dos Suicide. Mas os tempos são outros. Há muitos anos que Martin Rev se lançou numa carreira a solo, procurando, como refere nesta entrevista, um percurso distintivo e uma identidade musical própria. Tentou distanciar-se das referências estéticas dos Suicide, mas a inevitabilidade das conexões são mais do que muitas. E nem podia ser de outra forma, dada a ligação quase umbilical entre os dois músicos que constituem os Suicide.

Editou 7 álbuns em 25 anos de actividade musical a solo. Não se pode dizer que seja exactamente um músico muito prolífico. Como explica isso facto?
Não há grande coisa a explicar. Se estivesse ciente de como funciona todo o mecanismo destas coisas, provavelmente, diria até o contrário, mesmo se juntarmos os álbuns a solo, de grupo e os concertos. Durante muitos anos, naquele tempo, era impossível editar um disco a não ser que se tivesse um bom orçamento por parte de alguma editora. Quanto aos concertos era um pouco diferente, mas eram tão importantes como os álbuns. Por isso tínhamos de nos esforçar a fundo na questão da qualidade da música e no contexto em que ele era criada, em vez da simples quantificação de discos ou de edições.

O seu último álbum, “To Live”, foi editado numa pequena editora de Chicago chamada File 13. À primeira audição, ficamos com a impressão que o álbum respira o legado estético dos Suicide, mas depressa identificamos o seu próprio estilo e linguagem. Concorda?
Parece-me uma abordagem interessante. É claro que qualquer álbum a solo terá sempre algum tipo de referência aos Suicide, até porque sou a mesma pessoa. Mudar os elementos vocais acaba por tornar a minha música mais pessoal.

“To Live” parece conter posições políticas bem vincadas. Como encara a política e os políticos (não só nos EUA mas também no resto do mundo)?
Essa abordagem é ainda mais interessante. O álbum “To Live” não foi uma declaração política declarada, mas não posso negar que está lá. A forma como eu vejo o mundo acaba, de uma forma ou de outra, por se reflectir na minha música. E tenho tendência para expressar ideias políticas mesmo quando não tenho plena intenção disso. Não me interessam muito os políticos dos EUA ou do resto do mundo. Tal como muitos outros cidadãos, simplesmente reconheço o que parece estar justo e humano e o que não está, e aquilo que me parece honesto e o que é falseado. Tento vislumbrar para além do óbvio e isso nem sempre é fácil de conseguir. Parece-me que as prioridades políticas passam mais pela forma como se gere a ganância e os interesses, do que propriamente pelo bem comum do povo em geral.

A editora ROIR reeditou o seu primeiro álbum a solo em 2002 com cinco temas extras. Porque é que decidiu reeditar este álbum?
Decido editar um álbum quando sinto que ele é realmente bom e que tem substância suficiente para ser lançado. E o meu primeiro álbum tinha essa substância que me levou a mim e à editora ROIR a reeditá-lo. Mas não foi uma decisão minha, apenas dei uma oportunidade à ROIR de ouvir o disco e eles fizeram o resto.

Ritmos industriais, rock noisy, programações electrónicas, loops pesados, distorção sintetizada, revolta… são alguns dos conceitos fundamentais para compreender a sua música. Para além destas abordagens, é também verdade que não lhe interessa explorar o formato de canção pop.
Todas essas caracterizações são formas válidas de descrever, num certo sentido, alguns ingredientes da minha música. Mas eu não procuro intencionalmente essa fusão de elementos preconcebidos, ainda que possa começar com alguns desses elementos para dar início ao processo criativo. É tudo uma questão de saber como os sons certos e os valores musicais se encaixam e se digladiam durante o desenvolvimento criativo de um álbum. Quanto à questão do formato convencional de canção, devo dizer que está provavelmente certo quando refere que esse formato não está na minha mente no momento de fazer música. Não rejeito nada à partida, mas é natural que as velhas fórmulas dêem lugar a qualquer coisa de novo e refrescante. Normalmente, quando ouvimos algo desgastado pelas fórmulas do passado, sentimos que essas fórmulas se massificam de forma quase omnipresente. Donde, não tenhamos que ouvir sempre as coisas óbvias.

O que diria aos críticos que o acusam de ter um estilo vocal muito similar ao do Alan Vega nos Suicide?
Creio que há algumas similitudes dado que temos estado a trabalhar juntos há muito tempo, sendo natural que as ideias se misturem sem intenções. Ainda assim, há diferenças entre ambos. Temos qualidades vocais muito distintas, diferentes timbres e usamos as palavras de modo diferenciado. Nunca poderia cantar como o Alan Vega ou vice-versa porque temos posturas vocais e expressivas muito diferentes. O que pode causar alguma semelhança é o facto de haver em nós dois uma necessidade de cantar num género musical que requer uma determinada colocação de voz para as coisas funcionarem. Porém, o Alan utiliza muito mais palavras do que eu, e recorre a uma maior e diversidade se sons, de timbres e de recursos expressivos do que eu. Talvez esses críticos se refiram ao uso dos espaços entre as palavras, que ambos concordámos ser a melhor forma de explorar a voz desde os tempos dos Suicide, ainda que, posteriormente, nas carreiras a solo, tenhamos desenvolvido, cada um à sua maneira, a exploração desses espaços. As nossas formas de abordagem vocal e os processos de composição têm resultados assaz diferentes. Procure ouvir o álbum “American Supreme” [dos Suicide, editado em 2002] e compará-lo a “See Me Ridin” [de Martin Rev, editado em 1996].

Os Suicide são uma das bandas consideradas mais influentes e seminais do rock dos últimos 30 anos. Neste sentido, propunha que fizesse um exercício retrospectivo na sua memória e recuássemos até aos finais da década de sessenta para recordar esses tempos.
Os últimos anos da década de setenta foram grandes anos tais como o são os de agora. Havia uma intensa cena de muitas bandas localizadas em Nova Iorque e, mais tarde, no Reino Unido.

E como foi reencontrar-se com Alan Vega para tocar novamente juntos em digressão durante o último ano?
Eu e o Alan não nos reunimos apenas no último ano para a digressão recente dos Suicide, temo-nos reunido sempre que possível desde que começámos a tocar juntos. Temos feito digressões com regularidade desde meados dos anos 80 e quase continuamente desde 1998. Pelo meio temos dado concertos em Nova Iorque e no resto dos EUA. Por isso, a sensação de me reunir com o Alan, acaba por ser a mesma boa sensação de sempre.

A música electrónica é hoje uma imensa paleta de subgéneros e estilos. Qual é exactamente a sua visão da música que se faz actualmente?
Não tenho propriamente uma opinião acerca da música contemporânea. Quando ouço alguma coisa, basicamente, interessa-me ouvir a forma de abordagem e descortinar como foram trabalhados os elementos musicais para chegar àquele determinado resultado. Utilizo este processo de análise em todos os géneros de música que ouço. Não procuro perder muito tempo em ouvir demasiadas coisas no propósito de aprender com elas só porque são contemporâneas, visto que já estou suficientemente imbuído na música contemporânea. Por isso procuro antes pesquisar trabalhos musicais de outros géneros distintos que possam, de facto, surpreender-me pelo seu lado misterioso e desconhecido.

Como é que habitualmente toca ao vivo? Está sozinho no palco acompanhado do equipamento electrónico ou convida músicos para o acompanharem ao vivo?
Estou aberto a todo o tipo de possibilidades quando actuo ao vivo, desde que me pareça uma solução apropriada, mas por agora – e devido a muitas razões de ordem musical e outras – costumo tocar sozinho.

Entrevista conduzida por Victor Afonso para a revista Mondo Bizarre, Junho 2005

O tempo em que os discos eram discos



Vivemos na era da desmaterialização da indústria musical. As vendas de discos caem a pique como um prego ferrugento dentro de água. Não há forma airosa de combater a pirataria digital de conteúdos musicais: a evolução da sociedade é irreversível e os jovens consumidores desenvolveram novos hábitos de fruição cultural. Tanto é assim que as próximas gerações não saberão o que era um disco de vinil (LP) ou um CD. Com o progressivo desaparecimento do objecto CD, perde-se, complementarmente, o gosto militante pelo objecto físico do disco que caracterizou a minha geração. É um facto que a massificação da cultura digital está a fulminar, ferozmente, a “fetichização” dos objectos culturais. Sinal inexorável dos tempos, portanto.

Na Guarda sempre foi muito difícil comprar discos (bons). Ao longo dos anos, pulularam algumas pequenas e efémeras lojas que, juntamente com electrodomésticos, vendiam os discos que as rádios promoviam massivamente. A humilde excepção foi uma loja unicamente vocacionada para a venda de discos de vinil (o CD era ainda uma miragem comercial), situada mesmo ao lado do centro comercial Garden. Estávamos no final dos anos 80, princípios de 90. O proprietário da simpática loja, o Sr. Carlos, vendia sobretudo as novidades musicais de pendor mais comercial, mas também se disponibilizava para encomendar discos alternativos e independentes. Aqueles discos obscuros de música “esquisita” e de valor comercial meramente residual. A música dos “malucos”, asseverava, jocoso, o Sr. Carlos.

Nesses anos, havia ainda serviço público de rádio, uma vez que era o tempo em que a Rádio Comercial tinha na sua programação um dos mais importantes e alternativos programas de rádio de sempre, o qual ajudou a formar o gosto musical de uma geração: “Som da Frente”, do radialista veterano António Sérgio (neste momento está desempregado). Sempre às 16h, diariamente, em horário nobre. Algo impossível de acontecer hoje em dia. Houve também na Rádio Altitude, na segunda metade dos anos 80, um programa intitulado “Must”, o qual defendia uma filosofia de divulgação musical idêntica ao programa do António Sérgio. Era nestes programas radiofónicos (e noutros espanhóis) que eu e os meus amigos ouvíamos as novidades musicais mais excitantes. Apontávamos os nomes das bandas e dos discos e levávamo-los ao Sr. Carlos para ele os encomendar. Os discos pedidos chegavam diligentemente às nossas mãos, após uma ou duas semanas de paciente espera, por via das distribuidoras nacionais de discos independentes. Geralmente, após o fim das aulas do Liceu, lá íamos buscar os discos dos Einstürzende Neubauten, The Birthday Party, Coil, Psychic TV, Bauhaus, Philip Glass, The Sound, Cocteau Twins, Dead Can Dance, Love and Rockets, The Fall, Test Department, Residents, ou Joy Division, banda sobre a qual versa o filme “Control” de Anton Corbijn, recentemente estreado.

Nos momentos de comprar o disco e de o colocar em cima do prato de gira-discos, havia como que um turbilhão emocional resultante do prazer da descoberta sonora. Actualmente, o paradoxo evolutivo dos tempos leva a que um miúdo de 13 ou 14 anos descarregue da internet um disco em poucos minutos à distância de um clique e de 0 Euros de custo. Neste último capítulo, os Radiohead deram recentemente a machadada final no monopólio da indústria discográfica.
Na Guarda sentia-se uma espécie de isolamento castrante na procura de satisfazer a curiosidade musical. Não era possível satisfazer essa curiosidade apenas com a escassa oferta discográfica da loja de discos do Sr. Carlos (os amigos mais velhos eram decisivos na transmissão da cultura musical). Daí que era habitual a partilha de gravações (em cassete áudio) entre melómanos com gostos idênticos através de uma rede algo intrincada de correspondentes nacionais e internacionais. Verdade seja dita: havia um certo romantismo militante pelo coleccionismo apaixonado dos objectos musicais, mesmo à distância física das fontes e do tempo que levava a adquirir esses objectos. Atribuía-se inegavelmente outro valor (sentimental, identitário e até comercial) aos discos, à relação afectiva com os mesmos, facto que hoje um consumidor digital não manifesta – ninguém desenvolve uma relação afectiva com uma pasta indiferenciada de ficheiros mp3.

O paradigma de fruição mudou radicalmente. Os jovens de hoje, os da Guarda ou de qualquer outra cidade do mundo, exploram à potência máxima o facilitismo de consumo proporcionado por esse admirável mundo novo que é a janela virtual, vulgo internet. Na realidade, se tivesse agora 16 anos faria o mesmo. No fim de contas, porque razão deixaria de usufruir das mudanças tecnológicas que a sociedade e a indústria de consumo cultural proporcionam hoje em dia?