Há sinais que mostram claramente que a imprensa escrita deixou de ter jornalistas ávidos de bons debates intelectuais. Desde a morte do escritor e jornalista Eduardo Prado Coelho - provocador e amante de boas tertúlias à volta de filmes e livros - que não me lembro de haver na imprensa debates estimulantes (tirando a polémica titânica entre Vasco Pulido Valente e Miguel Sousa Tavares a propósito do seu livro "Equador").
Quero com isto dizer que achei estranhíssimo que não houvesse reacções (pelo menos que eu me tenha apercebido) a uma crónica do realizador António-Pedro Vasconcelos (APV) sobre o estado do cinema europeu actual. É que a crónica deste colunista e cineasta tem matéria suficiente para estimular opiniões contraditórias. A crónica veio publicada no semanário SOL de há duas semanas e versava sobre a questão "O que é um mestre no cinema?". APV dizia no seu texto que houve dois grandes realizadores que personificavam o epíteto de mestres: Hitchcock e Rossellini (um dos grandes cineastas no Neo-Realismo italiano do pós-guerra, com Vittorio de Sica e Visconti). Apesar de serem realizadores muito diferentes, ambos têm uma marca autoral na história do cinema, ambos teorizaram sobre a função artística do cinema, ambos desenvolveram os adjectivos "hitchcockiano" e "rollelliniano". Na verdade, foram dois cineastas que souberam interpretar os seus tempos e tinham visões muito próprias sobre a realidade e a arte (para além de terem deixado discípulos no cinema). Em suma, duas referências absolutas do cinema europeu (claro que há outras...).
APV refere ainda que o cinema europeu entrou em decadência a partir a da morte do Rossellini (1977). Mais: sem pruridos, diz mesmo que "hoje, no cinema europeu, não há mestres, tal como não há grandes políticos - porque não os pode haver. A verdade é que a última geração de grandes cineastas formou-se num período trágico da Europa, entre duas guerras devastadoras, onde se forjaram os grandes espíritos. Alguns desses mestres morreram precocemente, como Pasolini, Fassbinder e Truffaut, e deixaram um deserto sem remissão: o cinema deixou de influenciar a sociedade, e os cineastas deixaram de ser esses 'faróis', de que falava Baudelaire a propósito dos génios. Numa palavra, onde está o Rossellini dos tempos modernos?"
Eis uma opinião que, como disse no início do post, mereceria uma debate alargado e aprofundado. Isto porque António-Pedro Vasconcelos lança uma série de opiniões pertinentes e audazes. No fim de contas, refere que o cinema europeu, apesar dos mil filmes produzidos por ano, se encontra moribundo ou mesmo morto, sem réstia de mestres com a personalidade e identidade de um Rossellini. Será mesmo assim? Se quisermos ser rigorosos, creio que, de facto, a Europa já não tem cineastas com a envergadura de um Rossellini, de um Godard, de um Bergman, de um Buñuel, de um Kieslowski, de um Antonioni, de um Hitchcock (assim como o cinema americano já tem mestres como John Ford, Orson Welles ou Nicholas Ray). Mas será que este facto representa a morte do cinema europeu?
Não serão exageradas as palavras de APV? Ou será que correspondem à realidade? Uma coisa estou de acordo com o realizador português: o cinema europeu já não suscita novos olhares sobre a realidade à nossa volta, poucos são os filmes que questionam, que arriscam uma linguagem própria, que rompem preconceitos e inventam novas formas estéticas. Continua a haver filmes europeus de qualidade, vindos da Alemanha, da França, ou de Espanha, mas essa linhagem de cineastas imbuídos desse tal espírito forjado entre as duas guerras mundiais, esses já não existem ou são já uma raça em vias de extinção.
5 comentários:
Viva Afonso,
Não li o artigo em causa mas pelo que é aqui dito não me surpreende nada. Aliás, ficaria era surpreendido se houvesse neste momento cinema europeu do mesmo nível dos nomes que foram citados.
Mais ainda, e tomando de empréstimo uma frase tua ("Uma coisa estou de acordo com o realizador português: o cinema europeu já não suscita novos olhares sobre a realidade à nossa volta, poucos são os filmes que questionam, que arriscam uma linguagem própria, que rompem preconceitos e inventam novas formas estéticas.") penso que o memso poderá ser dito do Cinema enquanto arte. O Greenaway dizia que o cinema morreu com a invenção do telecomando e pelo que me parece não anda muito longe. No que a mim me diz respeito, não me parece que o cinema tenha morrido, mas uma certa ideia de cinema está já mais do que morta. O que morreu para mim foi a experiência do cinema (90% do público jovem vê cinema num ecrã de computador) e logo por aí metade do valor da mensagem é perdido. Cinema é fora de casa, no meio de uma assistência de anónimos cidadãos e por aí adiante.
Continua-se (e há-de-se continuar) a fazer bom cinema, mas não me parece que haja alguém a convocar a linguagem cinematográfica para explicar a realidade que o rodeia. Por um lado porque a realidade de hoje é infinitamente mais complexa do que era no tempo do Rosselini e o cinema não evoluiu ao mesmo ritmo do ponto vista gramatical chamemos-lhe assim; depois porque possivelmente não há ninguém sequer a fazer uma leitura minimamente sólida da realidade que o rodeia, seja cineasta, escritor, músico ou, hum, político.
Numa de citar nomes e partilhar imaginários e concluíndo esta breve missa a última coisa que me tem continuamente entusiasmado do ponto de vista cinematográfico é mesmo o Harmony Korine, sendo que este último Mister Lonely é certamente um ponto alto do cinema nos últimos 5 anos (ou 20 ou 30, ou 3 meses, sei lá, o filme é bom e pronto :) )
JRaposo
Parabéns pelo artigo, e eu pensava que "sabia demasiado"! Afinal, só sei que nada sei sobre cinema. Tenho aprendido muito com este blog. Obrigado! Já agora, aproveitando o tema do artigo, chamo a atenção para a crescente projecção que o cinema espanhol tem tido nos últimos anos. Tentei por diversas vezes arranjar uma explicação para tal, mas não encontro... Uma coisa é certa: temos visto bons filmes dos nossos "vizinhos".
JRaposo e Filipe Machado: obrigado pelos comentários(concordo com ambos).
o Godard ainda está vivo... e a filmar! Francamente.
Michael Haneke; João César monteiro; Manoel de oliveira; Pedro Costa...
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