Vivemos na era da desmaterialização da indústria musical. As vendas de discos caem a pique como um prego ferrugento dentro de água. Não há forma airosa de combater a pirataria digital de conteúdos musicais: a evolução da sociedade é irreversível e os jovens consumidores desenvolveram novos hábitos de fruição cultural. Tanto é assim que as próximas gerações não saberão o que era um disco de vinil (LP) ou um CD. Com o progressivo desaparecimento do objecto CD, perde-se, complementarmente, o gosto militante pelo objecto físico do disco que caracterizou a minha geração. É um facto que a massificação da cultura digital está a fulminar, ferozmente, a “fetichização” dos objectos culturais. Sinal inexorável dos tempos, portanto.
Na Guarda sempre foi muito difícil comprar discos (bons). Ao longo dos anos, pulularam algumas pequenas e efémeras lojas que, juntamente com electrodomésticos, vendiam os discos que as rádios promoviam massivamente. A humilde excepção foi uma loja unicamente vocacionada para a venda de discos de vinil (o CD era ainda uma miragem comercial), situada mesmo ao lado do centro comercial Garden. Estávamos no final dos anos 80, princípios de 90. O proprietário da simpática loja, o Sr. Carlos, vendia sobretudo as novidades musicais de pendor mais comercial, mas também se disponibilizava para encomendar discos alternativos e independentes. Aqueles discos obscuros de música “esquisita” e de valor comercial meramente residual. A música dos “malucos”, asseverava, jocoso, o Sr. Carlos.
Nesses anos, havia ainda serviço público de rádio, uma vez que era o tempo em que a Rádio Comercial tinha na sua programação um dos mais importantes e alternativos programas de rádio de sempre, o qual ajudou a formar o gosto musical de uma geração: “Som da Frente”, do radialista veterano António Sérgio (neste momento está desempregado). Sempre às 16h, diariamente, em horário nobre. Algo impossível de acontecer hoje em dia. Houve também na Rádio Altitude, na segunda metade dos anos 80, um programa intitulado “Must”, o qual defendia uma filosofia de divulgação musical idêntica ao programa do António Sérgio. Era nestes programas radiofónicos (e noutros espanhóis) que eu e os meus amigos ouvíamos as novidades musicais mais excitantes. Apontávamos os nomes das bandas e dos discos e levávamo-los ao Sr. Carlos para ele os encomendar. Os discos pedidos chegavam diligentemente às nossas mãos, após uma ou duas semanas de paciente espera, por via das distribuidoras nacionais de discos independentes. Geralmente, após o fim das aulas do Liceu, lá íamos buscar os discos dos Einstürzende Neubauten, The Birthday Party, Coil, Psychic TV, Bauhaus, Philip Glass, The Sound, Cocteau Twins, Dead Can Dance, Love and Rockets, The Fall, Test Department, Residents, ou Joy Division, banda sobre a qual versa o filme “Control” de Anton Corbijn, recentemente estreado.
Nos momentos de comprar o disco e de o colocar em cima do prato de gira-discos, havia como que um turbilhão emocional resultante do prazer da descoberta sonora. Actualmente, o paradoxo evolutivo dos tempos leva a que um miúdo de 13 ou 14 anos descarregue da internet um disco em poucos minutos à distância de um clique e de 0 Euros de custo. Neste último capítulo, os Radiohead deram recentemente a machadada final no monopólio da indústria discográfica.
Na Guarda sentia-se uma espécie de isolamento castrante na procura de satisfazer a curiosidade musical. Não era possível satisfazer essa curiosidade apenas com a escassa oferta discográfica da loja de discos do Sr. Carlos (os amigos mais velhos eram decisivos na transmissão da cultura musical). Daí que era habitual a partilha de gravações (em cassete áudio) entre melómanos com gostos idênticos através de uma rede algo intrincada de correspondentes nacionais e internacionais. Verdade seja dita: havia um certo romantismo militante pelo coleccionismo apaixonado dos objectos musicais, mesmo à distância física das fontes e do tempo que levava a adquirir esses objectos. Atribuía-se inegavelmente outro valor (sentimental, identitário e até comercial) aos discos, à relação afectiva com os mesmos, facto que hoje um consumidor digital não manifesta – ninguém desenvolve uma relação afectiva com uma pasta indiferenciada de ficheiros mp3.
Na Guarda sentia-se uma espécie de isolamento castrante na procura de satisfazer a curiosidade musical. Não era possível satisfazer essa curiosidade apenas com a escassa oferta discográfica da loja de discos do Sr. Carlos (os amigos mais velhos eram decisivos na transmissão da cultura musical). Daí que era habitual a partilha de gravações (em cassete áudio) entre melómanos com gostos idênticos através de uma rede algo intrincada de correspondentes nacionais e internacionais. Verdade seja dita: havia um certo romantismo militante pelo coleccionismo apaixonado dos objectos musicais, mesmo à distância física das fontes e do tempo que levava a adquirir esses objectos. Atribuía-se inegavelmente outro valor (sentimental, identitário e até comercial) aos discos, à relação afectiva com os mesmos, facto que hoje um consumidor digital não manifesta – ninguém desenvolve uma relação afectiva com uma pasta indiferenciada de ficheiros mp3.
O paradigma de fruição mudou radicalmente. Os jovens de hoje, os da Guarda ou de qualquer outra cidade do mundo, exploram à potência máxima o facilitismo de consumo proporcionado por esse admirável mundo novo que é a janela virtual, vulgo internet. Na realidade, se tivesse agora 16 anos faria o mesmo. No fim de contas, porque razão deixaria de usufruir das mudanças tecnológicas que a sociedade e a indústria de consumo cultural proporcionam hoje em dia?
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