Há dias, no programa "Quem Quer Ser Milionário" da RTP, apareceu esta pergunta: "quem é o vocalista e líder do grupo Mão Morta?". O concorrente não sabia e estava indeciso entre duas possibilidades apresentadas: Adolfo Luxúria Canibal e Adérito Murmúrio Visceral (grande nome, sem dúvida). Concursos televisivos à parte, este intróito serve para dizer que o vocalista dos Mão Morta é uma das personalidades musicais portuguesas mais interessantes e marcantes dos últimos 20 anos. Já lidei com ele quer em contexto profissional, quer em contexto pessoal, e atrevo-me a dizer que o Adolfo é a maior referência musical para os cultores da cultura alternativa e independente. Tem uma visão artística, política, cultural e social bem vincada em valores que foi adquirindo com as leituras dos autores malditos (Sade, Lautréamont, Bataille, Heiner Müller, Debord, Ginsberg...) e a assimilação das referências estéticas do rock mais experimental.
Os Mão Morta, identidade musical negra e danada, delinearam um imaginário estético próprio, único na forma e no conteúdo a nível nacional (ainda que com óbvias referências a grupos estrangeiros). Os seus discos tiveram, quase todos, uma base temática explorada até ao tutano, expondo as feridas de uma sociedade podre de valores, absorta de referências. O culto à volta do grupo foi-se gerando a partir do segundo álbum, "Corações Felpudos", 1990), fruto de concertos míticos, teatralizados e nos quais Adolfo se expunha como se sentisse na pele o estigma da expiação dos pecados mundanos. As letras soturnas sobre sangue, morte, decadência, raiva, transgressão, insurreição, deram consistência à aura do grupo de Braga.
Agora, numa transmutação artística mais abrangente e ousada, os Mão Morta vão apresentar quarta-feira, na Culturgest, o espectáculo "Maldoror" com base no célebre livro maldito "Os Cantos de Maldoror" do francês Isidore Ducasse, mais conhecido como Conde de Lautréamont. No Expresso deste Sábado, em formato de entrevista, Adolfo Luxúria Canibal expõe, de forma concisa e pragmática (como é seu hábito), a trajectória de 25 anos de vida artística, desde as vivências na Braga conservadora pós-25 de Abril, até à actualidade. Para além de outros aspectos interessantes do seu discurso, o vocalista dos Mão Morta refere que na sua vivência de estudante se vivia a política de outra forma: "A política nessa altura tinha um carácter muito cultural. As pessoas não se limitavam a discutir política ou a ler Marx e Lenine. Lia-se de tudo, discutiam-se muitas ideias, viajava-se muito, falava-se de pintura. A partilha de impressões sobre as mais variadas artes era enorme. Comecei a interessar-me pela literatura antes de me interessar pela música, e o livro "Os Cantos de Maldoror" entusiasmou-me porque só conhecia os clássicos da literatura portuguesa. A leitura de "Maldoror" entusiasmou-me com a violência da linguagem, com as imagens e descrições muito fortes. Todo aquele ímpeto contra Deus, contra a religião e contra o homem, eram ideias e imagens fascinantes para mim, sobretudo por estar inserido numa sociedade altamente politizada logo após o 25 de Abril e numa cidade como Braga."
Parece-me que este discurso de Adolfo seria impossível ouvi-lo da boca de um jovem da sociedade de hoje. Precisamente porque os tempos sociais e políticos são outros, e porque as novas gerações já não sentem o mesmo ímpeto de procurar linguagens artísticas alternativas à cultura dominante. Já não existe essa vontade de libertação e de afirmação por certos ideais utópicos que mobilizavam gerações há 30 anos atrás. O comodismo assentou arraiais, a política é um conceito completamente alheio aos jovens, não incentiva à mobilização, ao combate, à procura de formas alternativas de cultura. Adolfo Luxúria Canibal continua a ser uma voz inconformada, libertária e revoltosa, uma voz que denuncia e remexe nas feridas abertas (ideológicas, sociais ou artísticas).
Nota: na imagem, Adolfo a ler o livro "A Cozinha Canibal" de Roland Topor.
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