sexta-feira, 11 de junho de 2010

Dobragem vs legendagem


Devido ao facto de viver junto à fronteira espanhola, habituei-me, quando era miúdo, a ver filmes nos canais televisivos espanhóis, sobretudo aos sábados à tarde (grandes westerns eu vi pela primeira vez nessas sessões). Espanha possui, há muitos anos, uma verdadeira indústria de dobragem de filmes estrangeiros, com actores profissionais que se dedicam quase em exclusivo a este negócio (é uma arte, mas também um negócio). Os defensores das dobragens de filmes de língua estrangeira garantem que é uma forma de salvaguardar a língua e a cultura nacionais. É e não é.
A legendagem também promove o exercício da leitura e, acima de tudo, respeita a integridade artística inerente ao trabalho dos actores, dado que a voz de um actor representa um elemento preponderante, e por vezes essencial, da sua interpretação. Por outro lado, quando via filmes na televisão espanhola, era frequente conhecer as vozes dos actores espanhóis que dobravam estrelas de Hollywood. E não era raro deparar-me com um filme em que o mesmo actor que dobrava Marlon Brando, dobrava também Chuck Norris (é um exemplo caricato, mas deveras real).
Felizmente que em Portugal a legendagem vingou em detrimento da dobragem (esta só se aplica, e bem, a filmes infantis), fenómeno que já vem do tempo do Estado Novo (é estranho como Salazar não optou pela imposição da dobragem, já que era tão defensor dos valores conservadores da cultura nacional). Em Espanha a tradição dos filmes dobrados continua em força, mesmo nas estreias na sala de cinema – são poucos os filmes em exibição na versão original.
A dobragem, por melhor que seja feita, acaba sempre por desvirtuar a arte da interpretação e torna-se irritante ver continuamente a dessincronia entre a expressão labial e a fala. Ao fim e ao cabo, será que tem o mesmo efeito ouvir Robert Duvall dizer no “Apocalypse Now” a célebre afirmação “You smell that? Napalm, son. Nothing else in the world smells like that. I love the smell of napalm in the morning” em inglês, em castelhano, em francês ou em mandarim?

12 comentários:

analima disse...

Por ter passado muitos Verões da minha vida numa aldeia junto à fronteira tenho também a experiência de ver a TVE (aliás, a maior parte das vezes, os canais portugueses nem se conseguiam apanhar). Concordo com o que diz. Não me esqueço de determinados filmes ou séries dobrado. Ouvir o JR a falar com a mulher Sue Ellen, na série Dallas, muito popular em determinada altura, era delirante. :) E havia também os programas de música com os grupos a sofrerem uns baptismos muito engraçados ao estilo “Piedras Rolantes”. Um dos que mais me divertia eram “Los niños de la tienda de los animales domésticos”. Queria só acrescentar que ver um filme, ou seja o que for, no original, não ajuda só a promover o exercício da leitura, através das legendas. Ajuda-nos também a perceber todas as subtilezas de uma língua, a sua pronúncia, as suas diferenças de local para local. A facilidade como aprendemos inglês (sobretudo inglês) teve muito a ver com isso.

Back Room disse...

Naturalmente.

Muita gente terá aprendido a escrever português mais correctamente através da legendagem. Além de dar noções sobre outras línguas, o ouvir falar.

Mas para mim isso tudo até é pouco relevante. Um factor chega para considerar as dobragens muito nocivas: o desrespeito pelo trabalho dos actores. É óbvio que a voz é um dos fundamentos mais importantes do trabalho de interpretação, não faz sentido ser substituído por seja o que for.

J. Maldonado disse...

Eu nunca apreciei as dobragens, nomeadamente as espanholas e brasileiras. Perde-se muito da expressividade da língua original...

Rui Resende disse...

"Sayonara Baby", a dobragem castelhana do "hasta la vista baby", essa sempre me partiu todo.

a questão das dobragens em espanha, e legendagem em portugal são materializações diferentes de uma mesma postura cultural. A questão é que quando começaram a importar filmes sonoros (primeiros anos da década de 30) os regimes português em espanhol tiveram de tomar a opção, e a explicação é a seguinte:
-em Espanha, Franco lutava por uma unificação nacional que relegasse (idealmente suprimisse) as chamadas "nacionalidades espanholas", assentes sobre as línguas galega, basca e catalã. Ao dobrar, reprimindo as outras, o Franco esperava conseguir, ao longo de gerações, contribuir para o apagamento dessas culturas espanholas;

-em Portugal, o Estado Novo começou a perceber o papel forte que o cinema poderia ter na manipulação mental das pessoas, no incutimento daqueles valores "portugueses", do pobre mas honesto, etc etc. Por isso começou a patrocinar o cinema português. E como o país era essencialmente analfabeto, as legendagens eram uma forma de desencorajar o consumo de filmes estrangeiros para mais facilmente se introduzir os "valores" (que palavra perigosa) nacionais. Se não eras capaz de ler, a única solução era ver os filmes portugueses.

Ricardo-eu disse...

o motivo que levou à legendagem durante o estado novo foi simples, Salazar e o seu ministro da propaganda, António Ferro, queriam que os filmes nacionais (e nacionalistas) tivessem grande sucesso; jogando com o analfabetismo da maioria da população, os filmes estrangeiros teriam poucos espectadores, comparados com as enchentes dos filmes nacionais, simplesmente, porque a maioria não sabia ler, ou fazia-o mal.
Deste modo o cinema nacional era o maior do mundo e tudo o resto era desprezável, para intelectuais de lisboa.

Back Room disse...

Faz sentido. Interessante. Obrigado aos dois por essa informação sobre as legendagens/dobragens nos regimes franquista e salazarista.

Rui Francisco Pereira disse...

Num post teu anterior disseste algo a respeito deste assunto como "Não consigo ter respeito por um povo que não conhece a voz de Robert De Niro".

Penso que está tudo dito.

Rui Francisco Pereira disse...
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Rui Francisco Pereira disse...
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Rui Francisco Pereira disse...
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Rui Francisco Pereira disse...
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Rui Francisco Pereira disse...
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