Um dos mais singulares e "misteriosos" cineastas ainda vivos, Chris Marker, vem a Portugal para uma retrospectiva da sua obra no Estoril Film Festival. Sobre este realizador escrevi há dois anos neste blogue um texto que reproduzo agora.
Nasceu em França em 1922 e vive actualmente em Paris. Combateu na 2ª Guerra Mundial, estudou filosofia com Jean Paul Sartre e Guy Debord mas especializou-se em documentários, sendo ainda produtor, escritor, operador de câmara, artista multimédia e jornalista. Jean-Luc Godard, Orson Welles, Federico Fellini, Pasolini, Chantal Akerman, Wim Wenders, Werner Herzog, Errol Morris, Abbas Kiarostami, e Agnès Varda referem que é um dos melhores cineastas do mundo - um "ensaísta das imagens". Trabalhou com o realizador francês Alain Resnais no documentário sobre Auschwitz - “Noite e Nevoeiro” (1955). Deu muito poucas entrevistas ao longo da vida e quando lhe pedem uma fotografia, dá a do seu gato Guillaume.
Chama-se Chris Marker e realizou em 1962 um dos mais enigmáticos, originais e belos filmes de sempre: "La Jetée". É um filme de ficção científica (aborda dois temas recorrentes: o holocausto nuclear e a viagem no tempo), feito com imagens estáticas, fotografias filmadas, à excepção de um único movimento. A curta-metragem narra a aventura de um sobrevivente da Terceira Guerra Mundial que vive como prisioneiro nos subterrâneos de uma Paris destruída. Esse homem guarda lembranças de uma infância feliz na superfície, em tempos anteriores à guerra, quando costumava ser levado pelos pais para admirar os aviões no aeroporto de Orly. Numa dessas idas ao aeroporto, quando criança, ele vê um homem ser assassinado. Em virtude dessas memórias, cientistas do pós-guerra escolhem-no como cobaia para experiências de viagem no tempo. Como a superfície do planeta foi devastada pela guerra e pela radioactividade, a humanidade vive reclusa no subsolo e com parcos recursos. A viagem pelo tempo do protagonista irá levá-lo ao encontro da sua mais funda memória do amor, transformando a sua percepção da vida e do mundo.
Se o cinema permite uma sofisticada manipulação do tempo através da montagem, "La Jetée" demonstra que mesmo imagens estáticas são capazes de fluir e de se submeter ao transcorrer do tempo. Mas este é apenas um dos trunfos estéticos desta obra maior do cinema mundial. A poética das imagens, a soberba montagem, a história envolvente, a voz off subtil, fazem deste filme uma experiência artística única.
"La Jetée" é um filme sonoro a preto e branco, mas que prescinde de uma característica inerente à linguagem do cinema: o movimento. Neste aspecto, o crítico Raymond Bellour terá razão ao afirmar que não é o movimento que define o cinema de forma mais profunda, mas sim o tempo. E é sobre manipulação do tempo, concebida através de uma rigorosa montagem, que este filme se revela, provando que mesmo imagens estáticas são capazes de fluir e de se submeter ao transcorrer do tempo.
"La Jetée" é um filme sonoro a preto e branco, mas que prescinde de uma característica inerente à linguagem do cinema: o movimento. Neste aspecto, o crítico Raymond Bellour terá razão ao afirmar que não é o movimento que define o cinema de forma mais profunda, mas sim o tempo. E é sobre manipulação do tempo, concebida através de uma rigorosa montagem, que este filme se revela, provando que mesmo imagens estáticas são capazes de fluir e de se submeter ao transcorrer do tempo.
As novas gerações talvez saibam da existência do filme porque "La Jetée" de Marker inspirou o filme que Terry Gilliam (ex-Monty Python) fez em 1995, "12 Macacos", com Brad Pitt e Bruce Willis. O realizador Terry Gilliam diz mesmo que "La Jetée" de Marker “tem a melhor montagem que alguma vez viu, com a música e a voz a marcar o ritmo e a deslumbrar o espectador”.
As influências estéticas e plásticas do filme de Chris Marker perduram até aos dias de hoje, não só no seio do próprio cinema, como na música, na fotografia e nas artes plásticas. No caso da música, David Bowie tem um vídeo intitulado “Jump They Say” com referências directas ao filme de Marker; o grupo de jazz Chicago Underground Trio e os Isotope 217 têm um disco chamado "La Jetée" (1999 e 1999, respectivamente); o projecto de pós-rock Tortoise editou um disco intitulado "Jetty" (1998).
Em 1982, Chris Marker realiza outra obra seminal,“Sans Soleil”, que resulta numa complexa reflexão sobre a cultura da imagem na sociedade pós-moderna – filme, vídeo e fotografia. E volta a abordar os seus temas de eleição: ficção científica, memória, tempo, viagem, culturas de África e Japão. Realizou ainda um notável documentário sobre a vida do realizador russo Andrei Tarkovski - "One Day in the Life of Andrei Arsenevitvh" (2000) e em 2005 criou um trabalho multimédia e digital para o MoMa – Museu of Modern art de New York.
Chris Marker é um cineasta que continua activo mesmo com 90 anos de idade. Continua a pesquisar novas formas de expressão audiovisual, recorrendo às novas tecnologias digitais de tratamento de imagem e som. Um artista com visão quase táctil da experiência cinematográfica.
Primeira parte do filme "La Jetée" (as outras duas estão no youtube):
1 comentário:
Que boa notícia. La Jetée é uma das minhas curtas preferidas.
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