terça-feira, 2 de novembro de 2010

A Antologia Cinematográfica de Gérard Courant


Gérard Courant, 59 anos (na imagem), é um dos realizadores mais prolíferos da História do Cinema. No entanto, nem este facto o torna particularmente conhecido, mesmo nos meios académicos e cinéfilos.
O cineasta francês realizou e produziu cerca de 300 filmes desde os anos 70 até à actualidade, mas a sua obra mais reconhecida e ambiciosa continua a ser a verdadeira antologia cinematográfica chamada “Cinématon”, iniciada em Fevereiro de 1978. O conceito por detrás do “Cinématon” é simples (mas não simplista): uma câmara filma um único plano fixo de uma dada personalidade durante uns rigorosos 3 minutos e 20 segundos (a duração de uma bobine do formato Super 8). Enquanto Gérard Courant filma as personalidades, estas são livres de fazer o que quiserem em frente da câmara (os filmes são sempre mudos, mesmo que as pessoas falem). Não existe encenação ou artificialismos de imagem.
O projecto inicial de Gérard Courant, no final dos anos 70, resumia-se a filmar uma série de apenas 100 “Cinématons”. Contudo, este limite rapidamente foi ultrapassado com o entusiasmo do realizador, a adesão dos participantes e a originalidade inerente ao projecto. No total, Courant filmou, ao longo dos anos, o impressionante número de 4000 “Cinématons”, cuja duração total ascende a perto de 150 horas de filme. Corresponde a seis dias consecutivos de visionamento - a última exibição integral destes filmes foi apresentada em 2009, em Avignon (França).
Nesta monumental série de “retratos filmados” (uma tradução livre aproximada ao conceito de “Cinématon”) concebida ao longo dos últimos 30 anos (média de 100 por ano), Courant filmou milhares de pessoas: primeiro com amigos, familiares e realizadores em início de carreira; depois com intelectuais e personalidades artísticas (realizadores, músicos, actores) de renome internacional: Jean-Luc Godard, Wim Wenders, Terry Gilliam, Fernando Arrabal, Sandrine Bonnaire, Félix Guattari, Joseph Losey, Nagisa Oshima, Ken Loach, Roberto Benigni, Samuel Fuller, Gaspar Noé, Sergueï Paradjanov, Derek Jarman, entre muitos outros.
O realizador português Manoel de Oliveira também colaborou neste projecto, participando no 102º “Cinématon”, em 1981.
O trabalho de Gérard Courant lembra a pureza realista dos primeiros documentários da história do cinema, nos quais a acção é captada em plano fixo, sem artifícios de montagem e filmando a total espontaneidade natural do momento (ainda que alguma pessoa filmada possa encenar alguma situação). Não admira, por isso, que Raphäel Bassan, realizador e crítico de cinema francês, tenha referido que o autor do conceito “Cinématon” é o “descendente mais puro do cinema dos Irmãos Lumière”. Isto porque “cada retrato filmado” é como uma pintura em movimento que, durante três minutos e meio, regista as nuances da pessoa filmada, abrindo espaço para a sua interpretação ou, simplesmente, para a captação natural da sua presença física. E o realizador, numa minúcia de relojoeiro, aponta o dia, a hora e a profissão de cada "Cinématon" filmado.
Apesar de parecer um conceito ancorado em previsibilidade e monotonia, a verdade é que os “Cinématons” de Gérard Courant se prestam a muitos momentos distintos e surpreendentes, como as caretas feitas por Terry Gilliam, o “discurso mudo” de Roberto Benigni, a descontracção de Godard a fumar, a pintura facial efectuada pelo músico e performer Gérome ou a quase imobilidade física do realizador Robert Kramer. Alguns “Cinematons” são, por isso, mais exuberantes e interessantes do que outros, mas deste facto não decorre de nenhuma responsabilidade directa do realizador, visto que a liberdade de actuação perante a câmara é atribuída, inteiramente, à pessoa filmada. E é esta veracidade do momento filmado, esta autenticidade da imagem filmada que outorga a esta colossal série de “Cinématons” de Gérard Courant, uma originalidade quase neo-realista em formato de documentário de curta duração, num projecto único na História do Cinema: uma verdadeira Antologia Cinematográfica.
"Cinématon" de Terry Gilliam:


Nota: Este texto foi publicado originalmente no jornal do Teatro Municipal da Guarda, a propósito dos "Encontros Cinematográficos".

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