Conheci-o em finais dos anos 80, quando João Aguardela gozava o sucesso dos Sitiados e o hit "Esta Vida de Marinheiro" tocava em tudo quanto era rádio. Na altura, confesso, pareceu-me um músico presunçoso e pouco afável. Anos mais tarde, já os anos 90 decorriam, encontrei-me com ele duas vezes e trocámos correspondência. A tal ideia de presunção fora, afinal, meramente passageira. João Aguardela mostrara-se humilde e atencioso. Trocámos correspondência algumas vezes e sempre se interessou pelo meu trabalho musical. Megafone era o seu projecto musical mais pessoal (juntamente com o projecto de música electrónica Groovebox), aquele em que o músico mais se empenhou em criar uma linguagem estética nova a partir da conjugação da tradição musical portuguesa com ritmos electrónicos. Lançou quatro discos como Megafone, quatro manifestos magníficos de criatividade e invenção sonora, misturando recolhas musicais do etnomusicólogo José Alberto Sardinha com sonoridades drum'n'bass. Há três anos surgiu o projecto A Naifa, que projectou João Aguardela para a ribalta mediática que tinha conhecido, muitos anos antes, com os Sitiados. Uma banda que procurou (procura) outorgar à musicalidade portuguesa uma modernidade inaudita e original, uma sensibilidade pop contemporânea. Mais uma vez, Aguardela colocava a cultura portuguesa em primeiro plano sem esquecer o ensejo de inovação estética, à semelhança das correntes pop de vanguarda que corriam lá fora.
Vi o João, pela última vez, há menos de um ano atrás, no momento em que se preparava para fazer o "check sound" de um concerto d'A Naifa no Teatro Municipal da Guarda. Falámos cinco minutos. Estava magríssimo e nem sequer ousei, por pudor, perguntar-lhe pela doença que padecia (cancro do estômago). Mas o João, naturalmente, disse-me que já se encontrava em recuperação após a extracção de uma porção do estômago. Engoli em seco e desejei-lhe as maiores felicidades pessoais e profissionais (para o concerto dessa noite). O concerto d'A Naifa foi magnífico. Uns meses mais tarde, perto do Verão de 2008, vi uma reportagem na televisão sobre um espectáculo d'A Naifa. Reparei que o João Aguardela já não tocava viola-baixo na banda. Tinha sido substituído, pelo que depreendi que o seu estado de saúde se tinha deteriorado...
Desde essa altura, nunca mais ouvi falar do João. Mas confesso, agora com tristeza, que por vezes pensava como andaria a saúde do Aguardela sempre que ouvia A Naifa. As minhas filhas (6 e 9 anos) são fãs e conhecem as canções de cor. Mas no meu íntimo, temia o pior. Que o Aguardela já não tivesse forças para lançar um novo disco com A Naifa, ou com Megafone ou... Até que hoje leio a notícia da sua morte, aos 39 anos.
Um país que venera siglas como CR7, figuras como Tony Carreira e quejandos, mas que ignora um músico que contribuiu para solidificar uma certa ideia de identidade musical portuguesa, não merece muito respeito.
Paz à sua alma. E agora, em jeito humilde de homenagem, ouça-se, em alto volume, "Señoritas":
7 comentários:
Olá.Obrigada pela visita ao meu cantinho e respectivo comentário.
Não sabia da notícia, fiquei chocada!realmente já há muito que não ouvia falar dele. Que descanse em paz.Um beijinho.
Cancro do estômago? estranho... Não me vou sequer pôr à procura dos consumos que o podem provocar. Não vale a pena...
Era animado o rapaz, tenho pena que tenha morrido. Tanta como qualquer outra pessoa...
Enfim, na hora da morte as homenagens..., já é habitual. Olha o Pacheco, que antes de morrer ninguém sabia quem era e agora anda tudo a falar nele e a correr alfarrabistas em busca da obra... Mas desse tenho pena, dava-me prazer!
Este ano está a começar de uma forma criminosa. Os deuses andam mesmo zangados com a cultura.
Tudo tão rápido! Perdeu-se um grande músico. Como dizes, "Paz à sua alma"
Obrigada pelo comentário
beijinhos
Recebemos os A Naifa 2 vezes no CAEP, e em ambas as vezes os concertos foram excelentes, e o After-Party também (com ele a meter música).
Deu para trocar umas palavras com ele, falando de incrivéis concertos dos Sitiados em Alpalhão City no inicío dos anos 90, na Festa do Avante e dos Megafone na Queima em Coimbra, e sempre me pareceu simpático, ao contrário de alguns membros dos a Naifa, que por pudor (e por saber que muita gente lê o blog do Vítor, não mencionarei).
Não foi uma surpresa para ninguém a morte dele, mas é uma figura incontornável, e sub-apreciada do panorama musical português que partiu...
Pa-para-para-para-para-para-parí!
Esta frase tem a mesma presunção que viste no Aguardela...
"Um país que venera siglas como CR7, figuras como Tony Carreira e quejandos, mas que ignora um músico que contribuiu para solidificar uma certa ideia de identidade musical portuguesa, não merece muito respeito."
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