"Zelig” (1983), um dos menos lembrados filmes de Woody Allen, é também um dos mais estranhos, originais e criativos de toda a sua carreira. Talvez seja pouco (re)conhecido pelo facto de ser um filme conceptual, muito estilizado e de não se encaixar facilmente nas categorias convencionais de cinema, menos ainda, no típico registo de comédia habitual de Woody Allen. "Zelig" é considerado um documentário, mas um documentário criado na cabeça delirante de Woody Allen. Leonard Zelig foi um indivíduo que ficou muito famoso nos anos 1920/30, devido ao facto de possuir uma estranha e invulgar capacidade - a de adquirir as aparência física e mental daqueles com quem convivia. No meio de negros, Leonard Zelig ficava um negro; no meio de pessoas gordas, tornava-se gordo; com índios, ganhava aparência de índio; ao lado de psicólogos, passava-se por psicólogo, no meio de judeus ortodoxos, idem... Só não conseguia transformar-se em mulher devido à "extrema complexidade atribuída ao sexo feminino". Esta capacidade de se transformar tornou Zelig numa espécie de camaleão humano, suscitando o interesse científico de médicos, políticos, jornalistas e psiquiatras.
Neste filme de rara inteligência e humor, Woody Allen assume três funções: argumentista, realizador e actor. O filme é todo ele filmado como se se tratasse de um verdadeiro documentário, recorrendo a imagens e fotografias de arquivo dos anos 20 americanos, com testemunhos de figuras da cultura como Susan Sontag ou Saul Bellow, que contam as peripécias de Zelig. Leonard Zelig consegue conviver com figuras históricas como Hilter, o Papa Pio XXI, Al Capone, Charlie Chaplin, James Cagney, entre muitas outras. Só a doutora Eudora Fletcher (magnífica Mia Farrow) consegue compreender o distúrbio de Zelig, tentando ajudá-lo a superá-lo com uma terapia que vai desencadear uma aproximação amorosa entre ambos. Visualmente, "Zelig" é um trabalho de pura mestria plástica e técnica. Para tal muito contribuiu um dos maiores directores de fotografia de sempre, Gordon Willis (nomeado ao Óscar pela fotografia). Para recriar imagens que pudessem passar por cenas de um verdadeiro documentário, Gordon Willis filmou com câmaras de 8mm e colocou os negativos numa banheira cheia de água. Raspou-os no chão e submeteu-os ao frio, ao calor e à humidade, para os desgastar e, assim, ficarem com a aparência de imagens com 60 ou 70 anos. O resultado é deveras surpreendente.
É claro que esta obra de Woody Allen tem um paralelo histórico: “Citizen Kane” (1941), de Orson Welles, o mais conhecido falso documentário da história do cinema. Mas também deixou descendentes, com o filme "Forrest Gump" (1994), no qual o personagem interpretado por Tom Hanks convive com figuras históricas da América. "Zelig" é, pois, um objecto cinematográfico que desafia regras e convenções, está repleto de humor subtil, coloca questões freudianas sobre a personalidade e lança críticas sociais à sociedade de massas dos EUA (a dissolvência da identidade individual face ao colectivo social). E "Zelig" é, no fundo, uma experiência de cinema de grande expressividade visual e estética (mesmo visionando-o em DVD). Os primeiros 9 minutos de filme.
1 comentário:
eu vi no ano passado e nunca me diverti tanto. woody allen é absolutamente genial. beijos, pedrita
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