sábado, 21 de fevereiro de 2009

Música e cegueira


O meu primeiro professor de música era cego. Teria uns 9 ou 10 anos e recordo-me da impressão que me fazia ver um cego a tocar tão bem piano e guitarra. “Como é que ele consegue?”, perguntava na minha ingenuidade infantil. A verdade é que só mais tarde percebi que os cegos têm uma aptidão especial para a aprendizagem musical. Mais tarde, já no curso superior de música, estudei os mecanismos cerebrais para a aquisição e desenvolvimento da linguagem musical, que nos cegos são particularmente desenvolvidos. Reporto-me, uma vez mais, ao livro Musicofilia de Oliver Sacks. Nem de propósito, no capítulo 13 do livro, o neurologista aborda o tema: “Um Mundo Auditivo: Música e Cegueira”. Oliver Sacks começa por dizer que, quando era miúdo e aprendeu musica, julgava que todos os afinadores de piano eram cegos. Diz ainda que num estudo, descobriu que 40 a 60 por cento das crianças cegas tinham ouvido absoluto (a capacidade de identificar notas musicais isoladas e seus intervalos só pela audição). Nos músicos com visão normal essa capacidade é de apenas 10 por cento, enquanto que nos músicos cegos sobe para uns incríveis 60 por cento. É a prova de que o córtex cerebral responsável pela aprendizagem da linguagem musical se desenvolve mais nas pessoas cegas.

A imagem do músico cego (e do poeta cego) tem uma ressonância histórica quase mítica no imaginário popular. Durante séculos foram os músicos cegos que animavam as festas populares. Tocadores cegos de flauta, harmónica, harpa, cavaquinho, sanfona ou concertina existiam um pouco por todos os povos europeus (assim como na Ásia). O encaminhamento das pessoas cegas para a interpretação é, em parte, um fenómeno social, visto que os cegos eram considerados como estando impedidos de exercer muitas outras profissões. Já durante o século XX, talentosos cantores e tocadores cegos conseguiram fama e reconhecimento artístico, sobretudo, no blues, jazz e gospel: Stevie Wonder, Ray Charles, Art Tatum, José Feliciano, Doc Watson, Ronnie Milsap ou Rahsaan Roland Kirk. Muitos outros músicos juntaram ao seu nome a palavra “Blind”, quase como um título honorífico: Blind Lemon Jefferson, Blind Willie McTell, Blind Willie Johnson e Blind Boys of Alabama. Em Portugal houve uma considerável tradição de músicos e bardos cegos que tocavam nas aldeias. De forma a homenagear o papel desses músicos cegos, o cantor e músico César Prata (ex-elemento dos Chuchurumel) efectuou uma pesquisa de canções tocadas por cegos e dinamizou o projecto “Canções do Ceguinho”, no qual canta canções que outrora fizeram parte do repertório de cegos. Uma forma especial de preservar parte do património musical popular e tradicional português. São canções que contam histórias de faca e alguidar e que povoavam o universo sonoro das feiras e romarias de antigamente.

1 comentário:

F disse...

Alguns autistas também têm ouvido absoluto.
A música ouve-se melhor de olhos fechados. A dimensão passa a ser outra.
Dizem que é pior ser surdo que cego (sendo possível estabelecer a comparação). Os surdos tendem a alhear-se do mundo, das pessoas. Os cegos têm sempre aquela expressão de que estão sempre atentos.
O mundo dos sons apela à imaginação, o mundo dos "olhos" é aquilo que se vê (a não ser que alguma substância química o altere... mas aí já é o cérebro a actuar).
É impossível viver sem a música.
Obrigada pelo post.