terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Tati tem cada vez mais razão


Numa entrevista à revista Time, em 1958 - data da estreia do filme "O Meu Tio" (na imagem) -, o realizador Jacques Tati (para mim o maior cineasta francês de sempre, à frente de Truffaut, Godard ou Renoir) disse isto sobre o paradoxo da modernidade:
"Vejam o que nos está a acontecer - esta especialização. A despersonalização está a tirar todo o significado humano à nossa vida quotidiana. Um homem costumava orgulhar-se da forma como conduzia. Agora um carro guia-se sozinho. Uma mãe costumava orgulhar-se dos seus bolos. Agora eles fazem-se sozinhos. Um rapaz costumava orgulhar-se das coisas que inventava para brincar. Agora está soterrado em brinquedos feitos em fábricas. É triste , não é?"
Estávamos em 1958 e, nessa altura, a sociedade de consumo de cariz tecnológica era um fenómeno crescente e real. Porém, passados mais de 50 anos, Tati continua a ter (cada vez mais) carradas de razão na sua feroz crítica ao excesso de tecnologia mecanizada na vida contemporânea. O que me suscita uma questão pertinente: à luz dos tempos modernos, que filme seria "O Meu Tio" se Jacques Tati o realizasse hoje?

9 comentários:

Renato Martins disse...

Huh... pois eu ainda esta semana lia Kierkgaard e ele falava dos problemas morais dos homens do sec. XIX, problemas estes que eu pensava que eram proprios do sec. XXI. Há gente que pensa bem á frente. Eu apoio Tati, sinto o excesso dessa tecnologia sobretudo na educação, onde o PC faz tudo pelo aluno. Prova é que as criancinhas andam bem menos criativas de dantes...

abraço

F disse...

A questão é que a tecnologia estará a ser mal aproveitada. Tudo aquilo que permite ao homem ter mais tempo livre para se cultivar, enriquecer como ser humano e como ser hábil e criativo está a torná-lo mais alienado e mais dependente.
Como mãe, que sou, não gosto muito da ideia de me poder orgulhar dos meus bolos (não tenho vocação para a cozinha...), mas entendo a ideia do Tati.

Rolando Almeida disse...

O que o Tati não conseguiu prever é que eu consigo dominar um sistema operativo, consigo formatar um pc, consigo fazer fotos à minha medida, consigo filmar com muita facilidade e consigo construir e manter um pequeno site ou blog na net. E isto faz-me pensar que ele não foi tão profético quanto isso. As pessoas deixaram de fazer umas coisas para passar a fazer outras. Até me parece mais verdadeiro afirmar que aqui há 50 anos as pessoas tinham menos liberdade para fazer coisas que hoje em dia. Como disse, não me parece que a visão de Tati estivesse lá muito correcta.

Renato Martins disse...

Rolando:
Nada do que falas se refere a liberdade. O máximo que disseste é que a pessoa agora tem uma escala maior de intervenção, neste caso, na net, chega a ser a global. Passámos de "aldeões" para "Globões2 (neologismo feioso eu sei), mas será que isso quer dizer que ganhámos em liberdade?
Pois eu acho que nao por uma razao bastante simples: os filtros sao maiores e mais exigentes e por consequencia, a condicionante psicologica é maior para qualquer emissor.

abraço

Rolando Almeida disse...

Olá Renato!
Sabes por que razão nos encontramos aqui? pela liberdade que temos em comunicar. Vai lá para a Mauritania escrever nos blogs e vais ver a liberdade que conseguiste com as tecnologias.
Pá, isto é simples: pegas numa faca e tens a liberdade de cortar uma maçã com ela ou matar um gajo. Imagina lá que as pessoas tinham desatado a matar-se umas às outras com facas! Violavam a liberdade umas às outras de viver. Mas é a faca a culpada disso? Ou o que as pessoas fazem com as facas?
O Tati disse o que disse numa altura em que as ideias de esquerda estavam na moda e em que era corrente aceitar que o capitalismo era a fonte de todos os males. Acontece que o tempo mostrou que essas ideias não colaram bem à realidade.
E o exemplo que dás lá mais acima também me parece exagerado. Eu uso computador nas minhas aulas, porque é mais fácil e mais higiénico do que usar quadro de ardósia e giz com aquele pó altamente prejudicial à saúde.
De alguns, muitos até, maus usos da tecnologia não se pode concluir que toda a tecnologia terá um mau uso. Tem se as pessoas deixarem que tenha. E essa tua ideia, seguida da do Tati é o da frivolidade tecnológica, como jogar playstation, ver os filmes da moda e músicas da moda. E então as coisas boas que se fazem de um modo mais apurado com a tecnologia, desde a ciência até as artes?

Unknown disse...

Essa é uma questão premente na cultura de hoje: a de saber se a tecnologia contribuiu, ou não, para sermos mais livres. Um dos grandes críticos da sociedade tecnológica, Paul Virilio, admite que não, que a tecnologia acabou por afunilar a liberdade do cidadão, derivado da vigilância electrónica do Estado em nome da segurança global.
Claro que era impossível para Tati antecipar a grande revolução tecnológica de hoje (se até Bill Gates se enganou...), o que ele criticava era, no fundo, as profundas mudanças de hábitos sociais dos anos 50 condicionados pela pretensa modernidade da mecanização da sociedade de consumo e de massas - desde o tráfego automóvel, o comércio, os pequenos utensílios tecnológicos domésticos, a arquitectura massificada das grandes cidades, etc. Tudo isto condicionou um certo tipo de vida e de relações humanas, que sempre foram mais genuínas e espontâneas na sociedade pré-tecnológica.

Rolando Almeida disse...

Pois e aí o Tati antecipou bem.
Eu conheço vagamente as teses do Virilio. Mas as teses dele também me pareceram algo vagas.
O que me parece - e é o que defendi antes - é que as pessoas não são mais ou menos livres por existir mais ou menos tecnologia. Não me parece plausível apontar a tecnologia como limitadora da liberdade dos seres humanos. A liberdade social depende directamente da liberdade política e é o poder político quem usa ou não a tecnologia (ou outra coisa qualquer) para impor a vontade.
Mas esta análise é sociológica. A análise filosófica do agir não tem nada a ver com isto. Isso são contas para outro rosário.

Renato Martins disse...

Rolando,
a liberdade de expressão surgiu muito antes da internet e o exemplo da mauritania é pessimo. Eu usei muita liberdade de expressão sem saber o que era uma internet. Nao quero alingar esta discussao, apenas concordo quando dizes que se podem fazer coisas boas e mas com a net dizendo que a maior parte das pessoas está a fazer a parte má.

abraço e fico-me por aqui.

Rolando Almeida disse...

O exemplo é da Mauritánia precisamente porque é um país onde a liberdade de expressão não existe.
Já sabemos que a freedom of speach é anterior à net (onde é que foste buscar essa?), mas o que estava em causa era saber se com as tecnologias ficamos ou não menos livres de nos exprimir.