quinta-feira, 2 de julho de 2009

"Fome" - o corpo indomável


Mais vale tarde do que nunca. Hoje vi um dos melhores filmes de... 2008 (ver a minha lista de preferências de 2008).
Chama-se "Fome", e foi realizado pelo artista plástico-agora-realizador Steve McQueen. Já contava com um filme de efeito "murro no estômago", mas não contava com uma obra que traz qualquer coisa de novo ao cinema. A história é conhecida e vem nas enciclopédias: Bobby Sands, activista do IRA, preso político sem reconhecimento por parte de Thatcher, inicia em 1980 uma greve de fome como forma de protesto contra o o tratamento dado aos prisioneiros da terrível prisão de Maze, reclamando o estatuto de preso político. Bobby é alguém que defende, até ás últimas consequências, as suas profundas convicções políticas e ideológicas, e que tem consciência das consequências dos seus actos.
O que "Fome" tem, a meu ver, de prodigioso é o modo como Steve McQueen filma o corpo humano (e por inerência, o espírito humano) nas suas maiores privações e violência. Filma-o sem reservas morais, sem condicionalismos estéticos. Nota-se bem que o olhar de McQueen é o de um artista plástico: nos enquadramentos, nos planos, na montagem, na utilização soberba dos sons e da música (de David Holmes, um ex-DJ), na exploração dos espaços físicos e na gestão do tempo - e neste aspecto é impressionante o diálogo entre Bobby Sands e um padre num plano fixo de mais de 15 minutos. Aliás, este é mesmo o momento em que existe mais diálogo. Durante o resto do filme, os silêncios e os olhares pontuam os momentos de sofrimento e brutal violência vivida pelos prisioneiros.

"Fome" é um filme de retratra o espírito selvagem e inquietante de alguém que não renega a sua essência, a sua fé, e por isso é um filme seco, mas de uma secura terrivelmente fascinante, que traduz em imagens o que as palavras nem sempre conseguem revelar. O corpo humano como expiação, que sofre em defesa de um inabalável ideal (e 10 prisioneiros morreram à fome). Os últimos 10 minutos de película, em que vemos Bobby Sands a definhar, são os mais espantosos e, arrisco, poéticos. Há poesia na forma como o realizador filma os esgares, os olhares e o corpo do prisioneiro, como ele olha para si próprio enquanto jovem, como recorda os momentos em que corria pelo bosque. O actor que dá corpo ao manifesto, Michael Fassbender é impressionante na entrega e na interpretação.
Steve McQueen, por seu lado, mostrou com este seu primeiro filme, ser um realizador com muitíssimo talento e recursos visuais enormes (a prova são os inúmeros prémios que recebeu, um deles em Cannes 2008). Oxalá o futuro o confirme com obras de fôlego tão poderosas quanto este "Fome".

4 comentários:

O Narrador Subjectivo disse...

Boa crítica. Um filme impressionante em termos formais e o meu preferido de 2008. A ver se este novo Steve McQueen faz mais filmes.

João disse...

Um dos melhores do ano passado, sem sombra de dúvida. Esse diálogo que referes é assombroso, nunca vi nada assim.

Daniel Stilb disse...

uma verdadeira obra-prima contemporânea.

Francisco Maia disse...

tenho a dizer que o plano fixo é de 23 minutos!