quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Cinema, realidade, ficção


No magistral filme “Annie Hall” (1977) de Woody Allen, há uma cena desconcertante: o personagem interpretado por Woody Allen está numa fila de uma bilheteira de cinema; encontra um casal amigo e começam a falar, naqueles discursos intelectuais sobre arte e cultura, muito ao gosto do realizador. O homem divaga sobre a teoria de Marshall McLuhan (o mesmo que lançou o conceito de “aldeia global”) e o personagem de Woody Allen, farto de ouvir tantas baboseiras redundantes e pseudo-académicas, replica sarcasticamente: “desculpe, mas o senhor é um pedante e não percebe nada do verdadeiro pensamento de McLuhan”, ao que o homem responde: “sim? E como tem essa certeza?”. Woody Allen sai da fila da bilheteira e vai buscar pelo braço o próprio e verdadeiro Marshall McLuhan (que se encontrava escondido atrás de um cartaz!) que diz ao pretenso intelectual: “é verdade, o senhor não percebe nada da minha teoria!”. Então, Woody Allen olha para a câmara (para nós, espectadores) e remata de forma seca e resignada: “se a vida fosse assim tão fácil…”. Neste sublime recurso narrativo do realizador e actor nova-iorquino, podemos confrontar as duas vertentes que giram à volta de nós: a realidade e a ficção. Isto é, Woody Allen demonstrou que, se a vida real fosse como no cinema, essa mesma vida real seria bem mais fácil e condescendente. Se vivêssemos eternamente no mundo da ficção cinematográfica, rapidamente poderíamos viver a vida que sempre sonhámos, ter os bens materiais que desejámos desde a infância, os dotes intelectuais que sempre almejámos possuir.
Há quem diga que o cinema é “maior do que a vida”. A verdade é que no maravilhoso mundo do cinema as duas dimensões confundem-se (aquilo que é a realidade ficcionanda e a "realidade quotidiana"). Constate-se mais estes dois notáveis filmes sobre esta temática da fusão ou dualidade entre o mundo real e o ficcional: “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985), de Woody Allen (outra vez), em que um actor de um filme que passa numa sala de cinema sai da tela para se enamorar de uma rapariga da “vida real”; e “The Truman Show” (1998), de Peter Weir, admirável exercício de manipulação da realidade com base num programa demencial de “reality show”, no qual o actor Jim Carrey julga viver a realidade quando, na verdade, esta não passa de uma grotesca encenação televisiva totalmente ficcionada. Para terminar, o inevitável “Matrix” (1999) - filme que os irmãos Watchowski dizem ter tido inspiração nas teorias filosóficas de Jean Baudrillard - encena de igual modo essa visão distópica do real, na qual o personagem Neo (Keanu Reeves) parece viver uma espécie de alegoria da caverna platónica (mas muito mais tecnológica).

Contudo, um dos maiores mestres na manipulação da realidade e da “verdade” do real foi o realizador espanhol Luís Buñuel. Visionário e provocador como poucos, este surrealista amigo de Salvador Dalí serviu-se dos postulados da teoria psicanalítica e da corrente literária do surrealismo com o intuito de subverter os nossos cânones mentais de entendimento da “realidade”. O sonho comanda a vida, a vida pode ser uma ficção real ou uma realidade ficcionada. Muitas das suas obras revelam esse prodigioso poder que o subconsciente pode exercer sobre a vivência humana do real, quotidiana e mundana. E com isso deslumbra o nosso olhar, a nossa capacidade de imaginar.

E se por qualquer desígnio divino pudéssemos escolher, viveríamos a "realidade real" ou a ficção cinematográfica?

2 comentários:

Anónimo disse...

Victor,
Mais uma vez participo no teu blog como comentador. Agradeço a tua resposta no post anterior. Aproveito para te indicar que existe uma grade produção filosófica em torno do Filme Matrix e, curiosamente, são de áreas da filosofia distantes daquela à qual se inscreve o autor que inspira o filme, Baudrillhard (pelo menos há uma referência óbvia no filme ao Simulacros e Simulações). De todos os livros e ensaios destaco os de David Chalmers, um filósofo da mente. Uma das ideias mais exploradas pela filosofia no filme é a ideia de Hilary Putman, do famoso exemplo de "um cérebro metido dentro duma cuba" que é comandado exteriormente por um computador. Neste caso existe o determinismo e não somos livres na nossa acção. Fica a curiosidade. Não sei se já espiaste no amazon, mas é interessante ver como este filme suscitou tanto interesse aos filósofos. E ainda bem.
Abraço
Rolando Almeida

Unknown disse...

Sim, concordo que o Matrix tenha sido um dos filmes que mais discussão filosófica suscitou nos últimos anos. Há de facto muitos estudos e leituras sobre o filme. É invulgar que um filme de ficção científica aparentemente vulgar (mas não é) tenha levantado tantas questões complexas de interpretação. Como referes e bem, os realizadores disseram mais do que uma vez que se inspiraram no livro "Simulacros e Simulações" do Baudrillard. Se formos rigorosos, a trave mestra narrativa que passa pelo filme encaixa que nem uma luva nos postulados teóricos do filósofo francês recentemente falecido. A ideia de realidade como simulacro é recorrente no universo de Baudrillard, cuja radicalidade do discurso veio manifestar-se aquando da 1ª guerra do golfo (insinuando que teria sido um simulacro mediático fabricado pele Governo ou pela comunicação social).