Luiz Pacheco. Foi uma das personalidades mais insurrectas, marginais e criativas da literatura portuguesa do século XX (a par de Almada Negreiros e Mário Cesariny); foi um verdadeiro meteoro da escrita e da crítica, fulgurante espírito de sagaz mordacidade, capaz de descarnar as palavras da língua mãe como quem tosquia a lã de uma ovelha; foi um vagabundo das letras e da vida que nunca seguiu movimentos artísticos ortodoxos (pelo contrário, sempre se mostrou avesso a movimentos), nem nunca se mostrou interessado em fazer concessões ou deixar-se submeter a pressões do regime salazarista. Passou muitas vicissitudes na vida (mendigou), amou muitas mulheres (mais propriamente meninas), cultivou ódios de estimação (como o escritor Urbano Tavares Rodrigues), concebeu oito filhos de três mulheres distintas e rebelou-se contra a letargia da literatura portuguesa ao longo de várias décadas. A sua afeição pelo Surrealismo foi quase um epifenómeno, mas deixou marcas nele próprio e na geração que se lhe seguiu. Fruto da sua inquebrável consciência cultural e política e da sua abnegação artística, cedo procurou trilhar o seu caminho, lutando contra todo o tipo de estigmas (da censura e da igreja), pressões e convenções sociais.
A libertinagem criativa e vivencial de Pacheco constituiu um padrão de vida. A sua visão da vida e do homem passava por aceitar as diferenças e a marginalidade (como a homossexualidade e a promiscuidade sexual, temas diversas vezes abordados, sem preconceitos, em textos seus). O exercício da escrita e a promoção da literatura então desconhecida (através da sua importante actividade como editor) foi a fonte de energia que alimentou a vida do artista e do homem. Luiz Pacheco, de seu nome. Uma vida no fio da navalha. Ou do abismo. Tem agora 82 anos, está algo debilitado fisicamente e vive num quarto de um lar do qual não sai há cinco anos.
Um documentário (já exibido na RTP2), intitulado “Mais um Dia de Noite”, com realização de António José de Almeida, traz nova luz sobre esse singular autor que se apresenta desta forma: “Chamo-me Luiz Pacheco, já fui escritor, agora sou um fantasma”. Só que esse “fantasma” vive ainda em carne e osso, mantendo a mente lúcida e acutilante como sempre. Um verdadeiro espírito livre. Libertário. Neste documentário, podemos ver os depoimentos de José Saramago, Mário Soares (a quem um dia pediu 20 escudos emprestados!), Rui Zink, Vítor Silva Tavares, João Pedro George, filhos do Luiz Pacheco entre outros intervenientes directos ou indirectos na vida e na obra de Pacheco. E a obra de Pacheco é imensa, tendo colaborado com dezenas de jornais, revistas e lançado livros proeminentes da literatura portuguesa da segunda metade do século XX. É o caso de “Comunidade” (1964) e “O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor” (1970). Mas o seu legado não se fica pelo seu estilo de escrita subtil e frontal. O trabalho de edição foi um dos mais notáveis de toda a história editorial portuguesa. Em 1950 lançou a editora Contraponto e meteu mãos à obra: não se fez rogado e editou em pleno auge da ditadura do Estado Novo, autores “malditos” e até então desconhecidos como Marquês de Sade, Ionesco, Pirandello, Beckett, Pablo Neruda, ou os portugueses Herberto Hélder, Virgílio Ferreira, Mário Cesariny, Natália Correia e José Cardoso Pires. Pela sua forma de estar na vida, sem medos e sem temores de qualquer ordem, foi preso diversas vezes por certos textos que publicou e pelas mulheres menores com que se envolveu. De igual modo, uma das suas facetas mais polémicas é a de crítico literário. Não raras vezes gerou verdadeiras ondas de controvérsia no meio literário português, ao publicar as suas críticas viperinas sobre autores e obras.
Excerto do documentário:
Sem comentários:
Enviar um comentário