sábado, 15 de dezembro de 2007

Espírito marxista


A sua figura, só por si, era já cómica o quanto baste. Bigode espesso pintado de negro, charuto ao canto da boca, falador sarcástico e dono de um andar bizarro. Chamava-se Marx, Groucho Marx. Na inscrição da sua lápide, por vontade prórpia, está escrito: “desculpem por não me levantar”. Piada derradeira de um homem que soube, na vida como na morte, usar o humor como instrumento de pertinaz sátira social, política e cultural. Possuía um extraordinário talento comunicativo, fruto da sua eloquência verbal que desconcertava quem o ouvisse falar. Sobretudo as mulheres, já que estas eram sobejamente o alvo preferencial do humor marxista. De resto, das mulheres achava Groucho que eram uma espécie humana de somenos expressão e que raramente as conseguia compreender. Olhava para elas com sobranceria e eram frequentemente objecto de piadas sexistas e cínicas.
Talvez no esforço de entender melhor a alma feminina tenha casado três vezes em diferentes fases da sua vida. A sua última subida ao altar deu-se já Groucho tinha 80 anos. Casou com a sua secretária, uma moça invariavelmente muito mais nova do que ele e que, curiosamente ou talvez não, tinha interpretado um papel num dos primeiros filmes de outro mestre do humor no cinema, Woody Allen. Coincidências? Groucho Marx conheceu o apogeu da fama com os célebres Irmãos Marx, pandilha de humoristas anárquicos, autores de alguns dos mais subversivos filmes feitos em Hollywood (“Um Dia nas Corridas”, “Uma Noite na Ópera”…). Devastaram cânones sociais, regras básicas da narrativa cinematográfica, romperam com convenções de estilo, e introduziram outro elemento primordial para o seu sucesso: a improvisação. Conta-se que no plateau a irreverência era total e que muitas vezes não seguiam o guião, improvisando sequências inteiras. É claro que por vezes o resultado era o cenário destruído, o guião de pernas para o ar, as actrizes acossadas e o produtor de cabeça perdida. Não havia limites para a criatividade dos Marx e o seu humor feito de situações absurdas e levadas ao paroxismo cómico resultou tanto em admiração como em ódio. Ainda hoje, depois de quase trinta anos do desaparecimento da morte do líder dos irmãos Marx, continua a haver legiões de devotos e de admiradores por todo o mundo.
Figuras com a do Groucho já não existem mais, capazes de subverter a ordem e continuar a assobiar para o lado como se nada fosse. Talvez a vida fosse mais divertida se tivéssemos uma certa dose de espírito marxista em nós.

2 comentários:

Anónimo disse...

Pois, o humor também se burocratizou, tomou postura de executivo, gravata e camisa às risquinhas verticais azuis e brancas; pior, nalguns casos até se tornou demagogo, fácil.
Seria hoje possível na América pós-onzedonove fazer um filme como o que há 80 anos (1929) fizeram os Marx em plena ressaca do "crash"?
"Animal Cracker" é um filme com um humor tão demencial que, segundo contava o meu avô, e mais tarde confirmei numa das célebres folhinhas da Cinemateca, os espectadores de 1930 abandonavam a sala ainda mais deprimidos do que à entrada.
De facto, não me considero um saudosista, mas já não há Marx(es) como antigamente.
jPinto

Unknown disse...

É isso mesmo.
Continua a haver muito mais gente interessada no outro Marx, o Karl, do que no Groucho.