Geralmente, passo ao lado do escaparate de livros no hipermercado que frequento. Os títulos que se vendem por lá são os "best sellers", os livros de estrelas da televisão e do espectáculo, os Paulos Coelhos deste país e dos outros. Literatura digna desse nome, nem vê-la. Por isso, qual não foi o meu espanto quando há dias me deparei com o livro "As Benevolentes" (edição Dom Quixote) de Jonathan Littell, misturado com os livros de auto-ajuda, de culinária do Goucha e de astrologia da Maya. Este livro tem sido um verdadeiro acontecimento editorial em todo o mundo, com uma repercussão internacional raramente vista, mais a mais, para um livro desta magnitude. Não apenas por se tratar de um livro de quase 1000 páginas, mas também pela dimensão narrativa ambiciosa e pelo fôlego tremendo em querer relatar os horrores do Holocausto de forma quase documental. Há crítica literária que afirma que há um tempo antes de Littell e outro depois de Littell. Para mais, "As Benevolentes" ganhou o importante prémio Goncourt em 2006. Sintomático da importância desta obra. Apesar de ser um livro volumoso e denso, não deixou de suscitar o interesse dos leitores, chegando agora ao mercado nacional a segunda edição.
Voltando à minha estupefacção por ver este livro no hipermercado: reitero que fiquei surpreendido por ver esta obra de grande qualidade e especificidade à venda numa vulgar e massificada montra do consumismo. A questão é outra e mais pertinente. Quais os critérios para que uma obra destas características fique de repente à venda num escaparate manifestamente comercial, orientado para as vendas de consumo imediato, no meio de livros iníquos e efémeros para um público indiferenciado? Só porque se encontra na segunda edição? Pela atenção que os jornais têm dado a este fenómeno editorial? Por eventuais esforços de lobbying da Dom Quixote? Parece-me que a explicação está em todas estas motivações e em nenhuma. Ou seja, desígnios insondáveis do mercado livreiro e de distribuição em Portugal.
4 comentários:
As "livrarias" de supermercado estão a melhorar :-) talvez seja isso...
Mas não é um sitio que cative a abrir um livro. No entanto agradeço a dica, vou procurar esse livro.
Beijinho.
Victor:
Chamas a atenção sobre algo de que não me tinha apercebido. Ainda bem. É claro que a esmagadora maioria das edições disponíveis nas grandes superfícies reflecte critérios de distribuição de acordo com a lógica pura do mercado. Que não é insondável, como dizes. É o rosto visível do funcionamento da lei da oferta e da procura e da rentabilização de um investimento. Se os números do mercado comprovam que existem muitos consumidores dispostos a trocar o seu dinheiro por determinado bem cultural, nada mais natural do que colocar esse bem à disposição do público, de modo a que chegue ao maior número possível de consumidores. É evidente que não encontras aí livros da Antígona, ou da & etc, só para dar dois exemplos. Poderia ser diferente? Creio que não. A questão está nos preconceitos com que se chega ao problema. Que tanto pode levar a que se torça o nariz perante a venda de livros num espaço "sem dignidade". Como a estranhar o tipo de oferta que aí se pratica. Em relação ao exemplo da postagem, creio que a venda do livro resulta simplesmente das quotas de mercado que atingiu. Uma coincidência feliz, portanto. Por outro lado, como não tenho preconceitos nesta matéria, creio que o mercado editorial está a dar alguns passos importantes na sua consolidação. Mesmo que isso passe por processos de concentração. Paradoxalmente, como já sucedeu noutros países onde esse fenómeno já existe há décadas, poderá haver um refluxo, graças à diminuição dos custos de impressão, que consiste na criação de uma rede de pequenas editoras que publicam sobretudo ensaio e poesia. Portanto, se são ESSES livros que estão à venda é porque são ESSES que as pessoas compram. E, provavelmente, se compram outros, fora do maintream, é porque foram lendo esses que estão habituados a comprar. A alteração destes dados não se faz criticando o tipo de oferta. Tal como não se pode alterar um efeito sem se alterar as causas. E a principal reside, em meu entender - para além dos factores normalmente apontados (marketing agressivo de algumas editoras, hábitos de leitura residuais, dimensão do sector editorial) - a montante. Isto é, se existir realmente uma boa crítica e divulgação literária, não hermética e fora dos circuitos das capelinhas, em publicações especializadas ou em separatas de periódicos de grande distribuição, talvez o espírito de procura de sectores mais amplos do público se alterasse. Para terminar, em relação ao conteúdo do livro, discordo quando dizes que a autor quis "relatar os horrores do Holocausto de forma quase documental". Um romance é, sobretudo, uma hipótese de conhecimento. Não é um relato histórico, mesmo que contenha factos históricos minuciosamente descritos. O que está em causa, quanto a mim, é a ilustração da banalidade do mal, e de como o totalitarismo pode anular o indivíduo sem ele o saber. Mas sobre isto falarei melhor na última postagem que vou dedicar ao assunto.
Abraço
Agradeço o teu contributo. Percebo o que queres dizer com a questão das flutuações do mercado editorial. E tens razão. As regras do mercado é que ditam as normas de distribuição, mas julgo que o facto de um livro com as características do de Littell estar à venda no supermercado abre novas perspectivas de distribuição do mercado livreiro.
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