quinta-feira, 27 de março de 2008

A escola em ebulição


O influente crítico de cinema francês André Bazin dizia que há dois tipos de pessoas: as que acreditam na imagem e as que acreditam na realidade. A imagem é a reprodução da realidade mediada e manipulada por determinado sistema de comunicação (cinema, vídeo, televisão, fotografia...); a realidade é a realidade real, empírica e objectiva. Vem esta asserção a propósito do caso da aluna que agrediu a professora na escola Carolina Michaelis. Nem vou comentar a forma vampírica como os media se têm debruçado sobre o assunto - há precisamente uma semana que os telejornais abrem obsessivamente com o caso. Claro que é inqualificável o acto da aluna, como do resto da turma (não só quem filmou). Um acto de humilhação da professora que os jovens alunos julgam ter sido de heroicidade, precisamente, porque se acharam impunes face às acções cobardes e indisciplinadas que praticaram. Já não me parece que seja considerada punição suficiente a mera transferência de escola da aluna em causa. Como bem disse Miguel Sousa Tavares (num raro comentário acertado que lhe ouvi dizer sobre educação), a aluna deveria ser punida com trabalho comunitário, dado que se a aluna é indisciplinada, vai continuar a sê-lo noutra escola qualquer.

Voltando à ideia inicial, o que me incomoda como professor é que parece que só existem casos de violência quando estes são transmitidos pela televisão. As imagens passam na televisão? Então temos de acreditar no empolamento do caso, como se este fosse o pior caso de indisciplina alguma vez cometido. Ora, quem vive diariamente numa escola (professores, alunos, auxiliares da educação), sabe que este caso da Carolina Michaelis é um caso grave, mas que é apenas a ponta do icebergue do fenómeno. A tal realidade supera a reprodução em imagens. Este caso nunca teria tido a repercussão na opinião pública caso não tivesse sido mediado pela câmara de um telemóvel. E este simples facto outorga uma outra dimensão mediática ao caso. Desmesurada, até. É já o próprio Procurador Geral da República que diz que as "imagens comprovam a a gravidade da situação". Será que o Procurador se preocupa desta forma veemente quando lê uma notícia no jornal sobre "bullying"? Ou quando recebe queixas de professores relatando casos ainda mais graves? Ou quando lê estudos sobre o crescente fenómeno da violência nas escolas públicas? Claro que não, porque esses meios não têm o poder que as imagens têm. E há que dar prioridade aos factos que as televisões documetam, o resto é secundário. A agenda política dos responsáveis é ditada pela ditadura da comunicação social de massas e das circunstâncias do espectáculo mediático (aposto como na próxima segunda-feira, no recomeço das aulas, haverá um batalhão de repórteres à porta da escola à espera da professora vítima deste caso). Os estudantes de jornalismo e comunicação social sabem do que falo - Ignacio Ramonet tem livros muito pertinentes sobre o fenómeno (basta citar o livro "A Tirania da Comunicação"). Apesar de não ser regra (até ver), a verdade é que todos os dias há situações graves de indisciplina nas salas de aula deste país. Todos os dias há reuniões de professores por causa de processos disciplinares, todos os dias há professores que vão para a sala de aula com medo (psicológico e físico) dos alunos e das situações que estes provocam para destabilizar a aula, todos os dias há atitudes de provocação, de humilhação dos professores, todos os dias há actos de violência (encobertos ou não) e de boicote às aulas. E tudo isto cria um clima de insegurança para a comunidade escolar, de instabilidade para o sucesso do processo ensino-aprendizagem. A reportagem da SIC e da revista Sábado comprovam isso. É evidente que é muito diferente o ambiente numa escola da Damaia ou de Bragança. As realidades sociais são completamente distintas. Mas eu passei por escolas da chamada província e testemunhei sérios e perturbantes casos de violência e insubordinação. Essa é a realidade que importa ter em conta, não apenas as imagens televisivas que daqui a um mês ninguém se lembra. Bem pode a Ministra vir dizer que este é um caso isolado, que não é. Só quem trabalha diariamente numa escola conhece as tremendas dificuldades de trabalho para os docentes.

Há muitos anos que especialistas da educação (nacionais e internacionais) e estudos académicos chamam a atenção para o facto que um dos principais motivos para o insucesso e abandono escolar é a indisciplina dos alunos (e tudo o que esta acarreta). Nos últimos 20 anos, ela tem crescido de forma assustadora. Professores que hoje se encontram à beira da reforma, com 30 e mais anos de serviço docente, referem à saciedade que o panorama na sala de aula se alterou brutalmente desde as duas últimas décadas a esta parte: o estatuto do professor foi perdendo o carácter de autoridade e hoje os alunos não olham para ele como o mesmo respeito que antigamente. A figura social do professor foi sendo desvalorizada ao longo dos anos, e o aluno foi ganhando formas de impunidade e de desresponsabilização. Os sucessivos ministros da educação têm optado por uma via excessivamente burocrática e de facilitismo no sentido de fazer subir, à força, as estatísticas do sucesso escolar. Despoletar um processo disciplinar é enfrentar uma teia burocrática quase kafkiana. As famílias, principais responsáveis pela educação dos seus educandos (ainda que essa responsabilidade seja sempre sacudida para os professores), descartam-se do acto de educar e de incutir valores em casa. Por outro lado, a extensão da escolaridade obrigatória, a heterogeneidade da população docente (também há professores incompententes e sem formação), os graves problemas que atravessa a vida social, condicionam decisivamente o funcionamento do microcosmo escolar e exigem a reavaliação do papel do professor.

Face a tudo isto, não admira o nível de profunda desmotivação profissional dos professores (já nem falo do tema da avaliação ou da progressão na carreira). O Ministério da Educação em particular, e a sociedade em geral, têm de repensar o sistema de ensino, repensar o modelo de educação e desenvolver mecanismos eficientes para fazer face ao problema da indisciplina e da violência na escola. Não só para remediar mas sobretudo para prevenir. Caso contrário, a pergunta que se impõe é: que sociedade e que cidadãos estamos nós a criar?

4 comentários:

Ana Cristina Leonardo disse...

concordo em geral com o que diz, mas chamo a atenção para o seguinte:
«A ideia é inglesa e antiga: primeiro a sentença, depois o julgamento, e só depois o crime. E, se não chegar a haver crime, tanto melhor, como diria a Rainha a Alice. Assim, noticia "The Observer", as autoridades policiais inglesas propõem-se recolher amostras de ADN das crianças das escolas primárias cujo comportamento indique que "podem vir a ser criminosos". A ideia é de Gary Pugh, director da Scotland Yard: com a ajuda dos professores e educadores de infância, identificar, ainda de fraldas, os "criminosos potenciais" que "irão possivelmente tornar-se um perigo para a sociedade". A lógica criminológica da coisa é simples: quem rouba a pastilha elástica ao colega de carteira, acabará "possivelmente" a assaltar o Banco de Inglaterra, quem parte um vidro da escola à pedrada estará um dia a atirar aviões contra o World Trade Center. Segundo Rugh, "é possível identificar marcas de futuros criminosos em crianças a partir dos cinco anos" e, por isso, cadastrá-las e segui-las desde logo (ou, mais radicalmente, pôr-lhes logo uma pulseira electrónica ou metê-las na cadeia) evitará que sejam cometidos crimes. Com um pouco de sorte, quem sabe?, talvez se possam também identificar "marcas de futuros directores carrollianos da Scotland Yard a partir dos cinco anos"», Manuel António Pina
Mesmo que o "crime" neste caso tenha chegado antes do julgamento e da sentença, não conhecendo os protagonistas do caso, não sei dizer se a aluna é um "caso perdido" (que causará distúrbios para onde quer que seja transferida) ou apenas uma adolescente com as hormonas aos saltos; nem se a professora tem um problema de autoridade ou estava apenas a enfrentar uma turma "impossível". De qualquer forma, o circo mediático em torno do caso cheira-me a esturro. Das poucas coisas de que tenho a certeza é que o problema da escola e da educação não se resume ao slogan da "disciplina! disciplina! disciplina!"

Unknown disse...

Seria ingénuo e redundante resumir todos os problemas da educação e da escola à questão da disciplina (ou da falta dela). Até porque enumerei no meu texto outros factores que geram instabilidade nas escolas e no processo de ensino-aprendizagem. Mas reitero a ideia de que a disciplina é um factor fundamental para o bom exercício da prática docente e para conseguir atingir sucesso de aprendizagem. Mas este é um problema complexo que mexe com uma grande diversidade de factores - alguns externos à própria escola. Sempre disse que a profissão de professor poderia ser a profissão mais enriquecedora e bela de todas. Mas isso seria se vivêssemos num mundo perfeito e ideal.

Unknown disse...

Quanto à proposta das autoridades inglesas de procederem a processos de identificação de potenciais criminosos ainda em idade infantil, parece-me absurdo e até contraproducente. Por este andar, não faltará muito para que chegue o tempo preconizado por Philip K. Dick no livro (e respectivo filme de Spielberg) "Relatório Minoritário": a implementação de um sistema policial que efectue a previsão dos actos criminosos (antes destes acontecerem) através da monotorização e controlo mental dos criminosos. Perfeito.

Unknown disse...

Não sei se, sob determinado aspecto, as diferenças sociais entre a Damaia e Bragança sejam assim tão acentuadas; de certeza que entre a Damaia e o Restelo e até com alguns prestigiados colégios privados (onde também há terríveis problemas de indisciplina, "bullying, inclusivé), a diferença não é muito grande.É preciso não esquecer que esta geração é descendente da primeira a quebrar as regras da disciplina; os primeiros casos de violência nas escolas foram praticados pelos seus próprios pais que, de um modo geral, os têm educado não só desleixadamente como também se revêm no comportamento "exemplar" dos rebentinhos, como se confirma pelos inúmeros casos de violência de encarregados de educação para com professores. Se se recuar aos tempos das primeiras manifestações de "hooliganismo", hoje já existem provas fiáveis que esses grupos que causaram o caos um pouco por toda a Europa eram formados por jovens socialmente tão heterogéneos quanto pode ser alguém vindo dum bairro "scum" do sul de Londres lado a lado com um "yuppie" de Westminster ou Chelsea.
jPinto