sábado, 24 de abril de 2010

A vida real e a ficção


No magistral filme “Annie Hall” (1977) de Woody Allen, há uma cena desconcertante: o personagem interpretado por Woody Allen está numa fila de uma bilheteira de cinema; encontra um casal amigo e começam a falar, naqueles discursos intelectuais sobre arte e cultura, muito ao gosto do realizador.
O homem divaga sobre a teoria de Marshall McLuhan (o mesmo que lançou o conhecido conceito de “Aldeia Global”) e o personagem de Woody Allen, farto de ouvir tantas baboseiras redundantes e pseudo-académicas, replica sarcasticamente: “Desculpe, mas o senhor é um pedante e não percebe nada do verdadeiro pensamento de McLuhan”, ao que o homem responde: “Sim? E como tem essa certeza?”. Woody Allen sai da fila da bilheteira e vai buscar pelo braço o próprio e verdadeiro Marshall McLuhan (que se encontrava escondido atrás de um cartaz!) que diz ao pretenso intelectual: “É verdade, o senhor não percebe nada da minha teoria!”. Então, Woody Allen olha para a câmara (para nós, espectadores) e remata de forma seca e resignada: “Se a vida fosse assim tão fácil!…”.
Um belo exemplo de como a ficção e a realidade se entrelaçam num filme. A verdade é que no maravilhoso mundo do cinema as duas dimensões podem, deliberadamente, confundir-se (aquilo que é a realidade ficcionanda e a "realidade quotidiana"). Atente-se a mais estes dois notáveis filmes sobre esta temática da fusão ou dualidade entre o mundo real e o ficcional: “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985), também de Woody Allen (na imagem), em que um actor de um filme que é exibido numa sala de cinema sai, literalmente, do ecrã para se apaixonar por uma rapariga da “vida real”; "Zelig", fascinante exercício de falso documentário de Woody Allen, comentado por mim neste post.
E “The Truman Show” (1998), de Peter Weir, admirável exercício de manipulação da realidade com base num programa demencial de “reality show”, no qual o actor Jim Carrey julga viver a realidade quando, na verdade, esta não passa de uma grotesca encenação televisiva totalmente ficcionada.
Contudo, um dos maiores mestres na manipulação da realidade e da “verdade” do real foi o realizador espanhol Luís Buñuel. Visionário e provocador como poucos, este surrealista amigo de Salvador Dalí serviu-se dos postulados da teoria psicanalítica e da corrente literária do surrealismo com o intuito de subverter os nossos cânones mentais de entendimento da “realidade”. O sonho comanda a vida, e esta pode transformar-se numa ficção real ou numa realidade ficcionada. Muitas das suas obras revelam esse prodigioso poder que o subconsciente pode exercer sobre a vivência humana do real, quotidiana e mundana. E com isso deslumbra pela sua originalidade da visão do mundo, pela recriação da vida segundo a lógica não racionalista, renovando os "mecanismos de imaginação" do espectador.

4 comentários:

Rui Resende disse...

em relação à Rosa púrpura, que para mim é um dos guiões melhores do Woody Allen, comentei aqui:

http://7olhares.wordpress.com/2008/10/10/the-purple-rose-of-cairo-1985/

também a mim foi precisamente essa fusão entre mundos que me entusiasmou, neste caso a inversão da ordem normal, ou seja... não tem a ver com a forma como um personagem do filme entra num mundo de fantasia, tem a ver como a fantasia descobre o mundo "real" dos personagens do filme.

Flávio Gonçalves disse...

Gostei bastante deste texto ;) Interessa-me o assunto, mas convém não esquecer Michael Haneke que também é subtil e magistralmente capaz de transmitir a ideia da fusão da ficção com a realidade. Por exemplo, "Brincadeiras Perigosas" ou "Código Desconhecido".
Abraço!

João Ruivo disse...

Não falando de quebrar a barreira da tela para a nossa realidade, mas também relacionado com toda a temática do encontro entre a realidade e a ficção está também o Inland Empire do Lynch. No filme está a ser rodado um outro filme e o espectador muitas vezes não sabe se são os próprios personagens ou o papel que desempenham no filme dentro do filme.

(achei a cena da "morte" de Laura Dern na rua particularmente fantástica)

DiogoF. disse...

E que tal a brilhante cena final, do jogo de ténis, em Blow Up ?