Um dia alguém me contou que no final dos anos 60, numa entrevista ao "Diário de Lisboa", o escritor José Cardoso Pires afirmava que "feliz ou infelizmente, 'A Bola' é o jornal onde se escreve melhor português". Achei surpreendente.
Serve de mote para contar isto: quando era adolescente nutria uma grande admiração por um amigo uns anos mais velho: professor erudito de Humanidades, leitor compulsivo, cinéfilo e melómano inveterado. Exerceu sobre mim uma espécie de guia cultural, ensinando-me a olhar para um filme de Tarkovski, a ouvir uma composição de Boulez, a interpretar uma tela de Pollock ou a fruir a literatura de Kafka e Proust. No fundo, foi alguém que condicionou a minha formação cultural, que formou o meu gosto e afinou a minha percepção sobre matérias artísticas.
Não o via muitas vezes, achava-o um eremita que por vezes deambulava pelas ruas com livros debaixo do braço e que odiava manifestações de gosto popular como o futebol. Um suposto intelectual não podia gostar de futebol, pensava eu. Até que um dia tive um choque. Ao passar junto de um quiosque, vislumbro esse meu amigo, amante das artes, das letras e do pensamento, com o jornal “A Bola” na mão! Como era possível alguém como ele gostar dessa coisa de gosto massificado e popular que era o futebol?, pensei.
Na verdade, gostava. Só aos poucos me mentalizei que o gosto pela cultura (qualquer uma) não era incompatível com o gosto pelo futebol do "povo". Um professor erudito pode ser fanático pelo Benfica, assim como um jardineiro pode gostar de ópera. Era um preconceito bacoco que acabei por exterminar. Com a idade e a experiência, percebi que o prazer que se retira ao assistir a um bom jogo de futebol não é o mesmo de quando se vê um filme ou se lê um bom livro. Unicamente são formas diferentes de retirar prazer de uma actividade, ambas experiências enriquecedoras e legítimas, e que podem (devem) ser compatíveis no gosto generalista de qualquer pessoa.
7 comentários:
Actualmente trabalho em jardinagem (serei jardineiro)e goste de alguma opera - a saga dos Nibelungos- O Crepúsculo dos Deuses / Götterdämmerung- a nova e ultima produção do Teatro Nacional de São Carlos assinada pela já conhecida equipa de Graham Vick (encenação).abraço
e se puxares pelo Sporting podes exponenciar o sentimento ao infinito ;)
O futebol é um fenómeno social.
É o quase único sítio, ou o mais comum onde um cidadão pode ir chamar o que lhe apeteça aos outros, descarregar seus stress, frustações e que mais, e estes devem, em principio vir de lá mais aliviados.
Paradoxalmente a 'moeda má' pulula nas bancadas, cafés e sofás do futebol, e está a expulsar a pouca 'moedas boa' que ainda se atreve a andar netas misturadas.
Somos Latinos, não somos anglosaxônicos, nem temos vergonha.
"E isso nos envaidece". Enfim!
O futebol é um fenómeno, e quanto a mim, também um reflexo social,e vinga entre as massas, pois satisfaz o espirito combativo inato do homem, entre outras coisas, mas...
Desde o 'Apito dourado' que volta e meia dou comigo a perder tempo em escrever sobre este fenómeno (e minha paixão clubistica não fica de lado). Ainda recentemente o tenho feito. E estou farto.
Deixem-no definhar... Porque sim, o futebol pode, secalhar devia, ser um complemento e "compatível no gosto generalista de qualquer pessoa".
Mas como também ainda hoje cito um dos que para mim melhor vinha refletindo no assunto, até se fartar, referindo-se à blogosfera: "Não aprendi muito, confesso, sobre futebol, só confirmei o que sabia sobre a "iliteracia" da esmagadora maioria dos adeptos da bola que são o reflexo da péssima Imprensa da especialidade de visão enviesada e partidária do futebol, com incidência na intoxicação televisiva que, não só no futebol, encaixa no nível medíocre da intelectualidade das audiências."
E é aqui que entra o jornal 'A Bola' neste comentário.
Efectivamente, o jornal "A Bola" era o jornal Português, sem se esquecer o "Jornal do Fundão " , onde melhor se respeitava a pontuação. Sabia cavalgar imensamente bem a língua Lusa. Certos artigos eram um hino à arte do bem saber escrever.
Hoje perdeu essa qualidade. Pelo que leio, por vezes .
Existem hoje três diários desportivos em Portugal . É um absurdo ! E é ridiculo . Deve ser um recorde mundial !
Quando falo com um Português, a um dado momento , o futebol , aparece sempre. Aparece não como um fenómeno sociológico ou antropológico inerente à sociedade do espectáculo, mas como um estigmata em função da cor clubista.
É depriminte . Eu quando estou a discursar sobre literatura , por exemplo, detesto que venham com cores clubísticas.
O futebol para fanáticos tem os dias contados , quanto a mim , a curto prazo. Certas projecções futuras de estádios apontam para recintos com capacidade para 20 000pessoas no máximo . E, claro, com preços altíssimos.
Assistir a jogos de futebol corresponderá, sumamuda , ir à Ópera. Isto dito, a primeira liga Inglesa irradicou o holiganismo com preços altíssimos.
Não deixa de ser relevante o seguinte : Foi Artur Jorge quem desculpabilizou , em França , os amantes da modalidade. Um treinador que era poliglota, que sabia dar a sua opinião sobre um filme ... Algo ( adoro esta palavra que não tem real tradução ) nunca visto no mundo do futebol.
Tenho um colega, hoje professor universitário de matemática, que lia o "l'equipe" às escondidas. A chegada do Rei Artur foi para ele um alívio.
E lá voltamos às formas simples e complexas da arte , " au plaisir du texte" de Barthes ... ou ao palimpseste.
Por ser um fenómeno ligado à sociedade do espectáculo , os cineastas debruçam-se, cada vez mais , sobre o futebol.
Não tenho agora aqui a fonte debaixo dos olhos ( mas posso encontrar ), Manoel de Oliveira diz num número da "So Foot" que só conceberia filmar um jogo por detrás duma baliza. Já Wenders tem uma concepção bem diferente.
Verdades e mentiras da câmera, não é só um debate que diz respeito ao rugbi e ao futebol , quanto à arbitragem, é também um debate que atravessam as nossas sociedades.
Desde o tempo dos vitrais , as nossas sociedades ( ocidentais ) continuam a debater o tema da vida e da morte da imagem.
Desculpem se nem tudo é explicito , mas é difícil tudo resumir.
Nuno
Quando falamos na mediocridade deste jornal ,não esquecer os outros da area desportiva e alguns diários onde a escrita é horrível. Ex: Correio da Manhã e só completa o raciocínio do comentário anterior.
A Bola é o jornal que mais vende e em consequência disso é um dos poucos que pode pagar bem aos bons prfissionais. Os outros sobrevivem do amadorismo e a publicidade. Devíamos aprender que a qualidade paga-se. E paga-se bem.
Ora...Aprendeste uma bela lição e digo-te mais:
"Dizer que o futebol é 22 mercenários aos pontapés a uma bola é o mesmo que dizer que um violino é um pedaço de madeira com cordas e o 'Hamlet' é só papel e tinta"
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