O realizador húngaro Béla Tarr afirmou que "O Cavalo de Turim", Urso de Prata no Festival de Berlim, representa o último filme da sua carreira, justificando que já nada mais tem a fazer e a dizer com o seu cinema. Depois de ver o filme, concordo com ele (mesmo considerando que, em 2007, realizou uma obra-prima chamada "O Homem de Londres"). Depois deste filme, Béla Tarr não tem de provar mais nada, não tem necessidade de revelar, uma vez mais ao mundo, a sua mestria, a sua visão inigualável do cinema.
Durante 146 minutos, o espectador fica submerso perante a belíssima - e ofuscante - fotografia, hipnotizado pela música repetitiva, preso à vida rotineira do pai, da filha e do cavalo no campo, isolados de tudo e de todos. Pai e filha vivem do que transportam numa velha carroça e esperam durante 6 dias que o cavalo doente recupere para retomarem as actividades que os sustentam. O quotidiano é marcado por raras frases e acções monótonas sob uma ténue luz e dolorosos actos repetitivos. Mas é nesses momentos monótonos onde, aparentemente, nada acontece de diferente, que Béla comunica com o espectador. Tarr dá ao espectador tempo para observar e para pensar, porque este filme está repleto de ideias filosóficas, apesar da suposta banalidade narrativa.
É um filme perturbador pela aparente simplicidade formal, de uma grande exigência para o espectador comum: uma obra feita de pequenos detalhes visuais, de longos e hipnóticos movimentos fluidos de câmara, da crescente desagregação da relação entre pai e filha, da metáfora pessimista sobre o estado da humanidade (a partir de um episódio verídico protagonizado por Nietzsche), dos ruídos e silêncios, da escuridão súbita, do som do tenebroso vento constante... Tudo isto e muito mais é "O Cavalo de Turim", um filme de uma intransigência estética sem paralelo no cinema actual, de um radicalismo irredutível, de uma beleza plástica sufocante, de um estilo narrativo minimalista que desconstrói a forma convencional de olhar para imagens em movimento.
Béla Tarr arquitectou um filme sobre o fim dos tempos, o vazio absoluto, um mergulho angustiante no coração das trevas mais profundas. Não há violência, não há terror, não há sangue; mas em casa imagem, em cada plano e movimento de câmara, pressente-se um terror insano, um desassossego da alma, uma sensação absoluta de solidão que nos leva ao âmago da essência da existência: ou seja, ao Nada. Todo o filme é assolado por uma espécie de caos calmo, pela proximidade fétida da morte, num mundo sem esperança e sem Deus, que vai varrendo os restos de humanidade daquelas personagens. Um vizinho do velho diz-lhe: "A decadência do mundo foi provocada por seres maus, que tudo dominam, sem interferência de Deus. Os seres bons foram derrotados, ninguém mais os protege. Tudo está decadente, podre, em total desmoronamento. O fim está próximo”. Ver "O Cavalo de Turim" é sentir essa experiência-limite, quase física, quase abstracta, quase claustrofóbica, que provoca e incomoda, mas que não deixa ninguém indiferente.
Aquando da exibição do filme no Brasil, a produtora de Béla Tarr, Juliette Lepoutre, avisou a plateia: “O que vocês vão ver não é um filme, mas uma experiência de vida”. Se este é mesmo o último filme de Béla Tarr, então deixou ao mundo um "experiência de vida", em forma de testamento monumental, um objecto estético cujo conceito ultrapassa o do "cinema." Esta é já uma outra linguagem, outra força expressiva, bruta e complexa, que desafia e desconcerta, um olhar profundo sobre a essência das coisas que nem Tarkovsky ou Dreyer alguma vez conseguiram almejar.