segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Berlim, Cave, a bailarina e os anjos

Wim Wenders realizou o filme de uma geração. E há poucos realizadores, há poucos filmes que podem reclamar esse epíteto. O filme chama-se "As Asas do Desejo" (1987) e marcou toda a geração dos anos 80. Não conheço ninguém da minha geração que, depois de ter visto o filme na altura da estreia, não tivesse ficado marcado para sempre. É um filme sobre anjos. Sobre o amor de um anjo pelas coisas terranas, por uma bailarina (angelical, diria). É um filme sobre Berlim, uma Berlim lúgubre e decadente, poiso de artistas da vanguarda, cenário imagético. De criatividade febril. E é uma Berlim a duas cores, como Wenders conseguiu tão bem retratar: o preto e branco do olhar dos anjos, e a cor da vida terrena. (ou seria o contrário?). "As Asas do Desejo" é uma alegoria fantasista sobre os desejos do homem, sobre a natureza da eterna insatisfação humana. Nesta sequência, antológica, os anjos assistem a um concerto de Nick Cave & The Bad Seeds. Um concerto em que Cave canta uma das suas melhores canções de sempre: "From Her to Eternity" (variação do título de um grande filme: "From Here to Eternity", de Fred Zinnemann, de 1953). O anjo assiste, impávido mas prazenteiro, ao decorrer da acção: a bailarina, de vermelho, frui o espectáculo que Cave dá no palco (animalidade ainda remanescente da época dos Birthday Party). É uma das melhores sequências de concerto ao vivo jamais filmadas para cinema (e já estou a considerar o "Control" sobre os Joy Division). É poesia pura, visual e sonora. Em estado visceral e intenso. Inesquecível.

2 comentários:

Anónimo disse...

Bem, o teu blog, além de constituir a minha actual e mais preciosa referência de cinema e as suas curiosidades (he pá, é que aumentas mesmo o meu conhecimento da 7ª arte), tem ainda uma outra vantagem que não resisto a contar-ta: tráz-me à memória referências criteriosas. Recordo que quando andava no meu 12º ano, propus a exibição de As Asas do Desejo, na semana da filosofia da minha escola. O professor, que até conhecia bem o filme, perguntou-me com que propósito. Recordo que soltou um riso engraçado quando lhe disse que o filme retratava uma metafísica às avessas: em vez de serem homens que queriam ser eternos, eram seres eternos - anjos - que desejam ser homens, coloridos, com o sabor do café.... o mais impressionante do filme é que, para além deste aspecto, que já por si seria um bom motivo para um filme, ainda tem precisas considerações políticas e sociais, é magistralmente belo do ponto de vista puramente estético e, ufa, tem uma banda sonora luxuosa. Não me casava de falar deste filme. É, decididamente, o filme da minha vida e um dos filmes mais completos que me recordo de ver.
Obrigado Victor
Abraço
Rolando Almeida

Unknown disse...

Rolando: obrigado pelas tuas palavras. Sim, concordo que, se há filmes completos, este é um deles. Esteticamente é muito belo, com a alternância entre o preto e branco e a cor, os ângulos de câmara que representam o olhar dos anjos Damiel e Cassiel, os pensamentos destes perante as coisas frugais da vida humana, os seus simples prazeres – e sobretudo o enamoramento pela bailarina, encarnação de toda a beleza humana. O título “As Asas do Desejo” não podia ser mais claro. É um filme sobre o desejo de quebrar a monótona eternidade celestial, em favor da trivialidade passageira da vida terrena (com todos os seus pecados e virtudes). Um olhar místico e lírico sobre o poder do amor, sobre a importância de viver a vida com tudo que esta comporta. E como dizes, é um filme que retrata um certo estado de coisas ao nível político e social. Lembremo-nos que a queda do Muro de Berlim ocorre apenas dois anos após a estreia do filme. E é um filme profundamente filosófico e poético, que escalpeliza o sentido da existência, o lugar do homem numa sociedade descaracterizada, desumanizada e depressiva.
VA