Diamanda Galás actua a 6 de Maio no Theatro Circo de Braga, a 8 na Casa da Música e a 9 na Aula Magna em Lisboa para apresentar o novo álbum "Guilty Guilty Guilty". A propóstio desta artista, escrevi para a revista "Mondo Bizare" um artigo publicado no nº18:
DIAMANDA GALÁS - Combater o Mal
Num mundo conspurcado pelo Mal e polvilhado por interesses demoníacos, cujas manifestações se revelam através da Sida, da morte, do sofrimento ou de genocídios, Diamanda Galás representa uma tentativa de cura libertadora. Uma cura que expurga esses males, uma cura que se materializa numa das vozes mais feéricas e ameaçadoras que alguma vez se ouviu no panorama da música contemporânea.
Numa espécie de reencarnação negra de Maria Callas, num misto de diva vampírica e de profetiza pessimista, Galás faz uso da sua incrível extensão vocal (quatro oitavas) para, simultaneamente, propalar os pecados do homem e denunciar o dogmatismo religioso (assim como a insidiosa moral cristã). Nascida em San Diego, sob o sol escaldante da Califórnia, esta descendente de pais gregos ortodoxos revelou-se, nos últimos 20 anos, como a porta-voz de uma mensagem apocalíptica sobre as múltiplas faces da angústia existencial do homem. Com formação musical clássica (é pianista de eleição), fluente em várias línguas, detentora de uma cultura universalista, imbuída da poesia maldita de Baudelaire, fascinada pelo lado espectral da vida humana e recorrendo a textos bíblicos e de outras culturas não ocidentais, Diamanda Galás percorreu nos seus (até agora) 14 álbuns, um caminho tortuoso de purificação espiritual, de penitência árdua e sem concessões, rumo à catarse suprema. Galás é provocadora, insubmissa, politicamente incorrecta, radical (na forma e no conteúdo), experimentalista, e nisso tem semelhanças com Meira Asher ou Lydia Lunch. Mas Galás vai muito mais além, como ficou demonstrado em álbuns demenciais como “Litanies Of Satan” (1982), “Divine Punishment” (1986) ou “Plague Mass” (1991). Bastariam estes três tremendos testamentos sonoros para perpetuar o nome de Galás nos anais da história da música, fruto da sua voz visceral capaz de exorcizar demónios e da sua criatividade pianística que está tão à vontade no blues como nos devaneios libertinos.
Após o seu último registo ao vivo, “Malediction And Prayer”, datado de 1998, Diamanda Galás lançou edições sucessivas: “La Serpenta Canta”, editado no final de 2003, e “Defixiones: Will And Testament, Orders From The Dead”, lançado em Janeiro de 2004, ambos discos duplos, a solo e ao vivo. Dois trabalhos que, apesar de distintos esteticamente, acabam por se complementar. “La Serpenta Canta” é um registo gravado ao vivo em Adelaide, Austrália, em 2001; trata-se, muito prosaicamente, de um recital de canções em que Diamanda Galás interpreta, acompanhada apenas pelo piano, standards de canções blues e soul de autores populares como Hank Williams, Ornette Coleman, Screamin’ Jay Hawkins ou The Supremes. Neste disco, Galás consegue a proeza de reinventar o espírito soul-jazz de temas clássicos como “My World Is Empty Without You”, “I Put a Spell On You” ou “Baby’s Insane”. A cantora, respeitando as formas musicais dos originais, reorganiza-as harmonicamente, dando-lhes uma outra frescura tímbrica e, em suma, outra realidade sonora. “La Serpenta Canta” resulta, deste modo, como um dos trabalhos mais acessíveis e luminosos da autora de “Vena Cava”, onde até o formato canção é minimamente reverenciado.
Com “Defixiones: Will And Testament, Orders From The Dead”, a história é já outra, bem mais complexa, lírica e musicalmente. Este trabalho é remanescente da obra musical de Galás referente aos anos 80, isto é, à sua fase mais experimental e vocacionada para a exploração de uma temática específica. Da mesma forma que “Plague Mass” versava sobre as vítimas da Sida, este disco evoca o genocídio arménio e grego perpetrado pelo exército turco entre 1914 e 1923. Ou seja, novamente a veiculação de uma mensagem política incontestavelmente forte. Diamanda Galás socorre-se de poemas e textos históricos arménios, gregos, espanhóis e hebraicos sobre o tema, colocando o dedo na ferida aberta que constituem, ainda hoje, estas atrocidades cometidas há um século atrás. A cantora e pianista aborda o assunto sem constrangimentos e pudores, salientando o sofrimento e a morte que tais acontecimentos representaram para todo um povo massacrado.
Musicalmente, “Defixiones: Will And Testament, Orders From The Dead”, caracteriza-se por ser o regresso às sonoridades ríspidas e cáusticas do início da carreira de Galás, misturando melodias religiosas com a voz poderosa e extrema, despoletando as emoções mais primárias de quem ouve tais cerimoniais de morte e estertor. De resto, seria apenas suficiente referenciar o longo tema de abertura, “The Dance” (34 minutos cantados a cappella) para impressionar pela recusa de concessões estéticas e artísticas. É verdade que a voz da diva negra já não atemoriza como nos primeiros trabalhos dos anos 80, mas é um facto que estes dois trabalhos só vêm provar, caso ainda fosse necessário, que a honestidade artística e a coerência criativa de Diamanda Galás vão muito para além da realidade musical de hoje.
No fundo, são exigentes testamentos musicais que servem para agraciar a alma de quem morreu. Como por exemplo a alma do irmão da cantora que morreu de Sida e, em última instância, a alma de todos nós que vamos morrer um dia.