segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A música precisa de significado?

As linguagens das várias expressões artísticas contém elementos de ordem semântica, isto é, significante: são expressões que visam o estabelecimento de um processo de comunicação entre o criador, o objecto artístico e o correspondente receptor. Ora, se todas as linguagens artísticas se apropriam da realidade quotidiana para delas retirarem uma "consciência artística" (Marcel Duchamp, por exemplo), nem todas recorrem a esse processo nem possuem a mesma característica semântica. Na música, muitas vezes coloca-se a questão de saber qual a "mensagem" ou o "significado" de dada manifestação musical. Porém, acontece que a música pode existir por ela própria, sem necessidade de ser sustentada ou avalizada por qualquer outro tipo de conteúdo, seja formal ou conceptual.

Donde, o conceito de música não se reduza ao chavão simplista de "exprimir emoções e sentimentos por intermédio dos sons". As emoções podem estar ausentes (ou muito bem dissimuladas) numa criação musical. Uma obra musical pode afirmar-se unicamente como obra intelectual. Um qualquer compositor poderá ter apenas a intenção de criar um corpo sonoro específico, sem querer, necessariamente, explanar esta ou aquela expressividade emotiva. Assim, a única criação que manifesta esta possibilidade de "assemanticidade" (ausência de significado, de comunicação, de mensagem), é a música. A partir da publicação, em 1854, do livro "O Belo Musical" de Eduard Hanslick, as reflexões filosófico-estéticas à volta da arte musical têm esclarecido que a música não é um meio de comunicação por “natureza”, como a palavra escrita ou falada, visto que os sons têm já por si uma identidade própria (como muito bem demonstrou John Cage ou o português Jorge Peixinho), sem nenhum outro atributo adicional. Se quisermos ser rigorosos, a música é, literalmente falando, a mais ancestral arte, tendo-se manifestado desde o momento da criação do Universo e da matéria: o "Big-Bang", para além de ter dado início à criação do Universo, terá sido a mais majestosa e empolgante "criação musical" de todos os tempos.

Esta teoria explica-se porque foi nesse preciso momento em que o som e o silêncio e, consequentemente a música, surgiram. Donde, somos levados a concluir que a música já existe desde o preciso instante da criação do Tempo e do Espaço. Quer o físico Stephen Hawkind, quer o compositor experimental Karlheinz Stockhausen abordaram esta questão nestes termos. Por outro lado, já Pitágoras e Platão defendiam também que a música mais não era do que a representação da harmonia do Universo, o pulsar da vivência dos astros e dos planetas. Em música não há impreterivelmente que procurar nada fora da própria música; isto é, a razão da sua existência não se deve encontrar fora dos sons (ou do silêncio) que a constituem. Seguindo este raciocínio, há que atestar que não seria com o desaparecimento da Humanidade que a música se extinguiria de forma irremediável, até porque se atendermos à categorização da música realizada pelo filósofo Boécio (a qual postulava três formas musicais: a música "Humana", a música "Instrumental" e a música "Universal"), constataremos que a expressão musical dispensa a existência dos instrumentos e do próprio homem.

Que restaria então? Restaria a magnificência do silêncio – enquanto forma musical mais primária e cristalina - e a sublime emanação sonora proveniente da Natureza e do Universo (notemos que o compositor francês Olivier Messiaen dizia que não havia música mais perfeita que a dos pássaros). De resto, tanto quanto sabemos, a Mãe Natureza não se preocupa em procurar e atribuir significados às suas manifestações sonoras; essa é uma preocupação muitas vezes frívola do homem na tentativa obsessiva de querer dar significado a tudo. A racionalização dos fenómenos artísticos (neste caso musicais) nem sempre é o melhor processo para chegar ao entendimento da sua essência. Na realidade, o que mais interessa é constatação pura dessas manifestações sonoras. Existem, e é tudo quanto baste.

(texto originalmente publicado em www.divergencias.com)

3 comentários:

Ana Pena disse...

Olá:) vim aqui ter por acaso e dei com um texto muito bonito no entanto com o qual não posso concordar totalmente! "
Assim, a única criação que manifesta esta possibilidade de "assemanticidade" (ausência de significado, de comunicação, de mensagem), é a música."
Não creio que a música seja a única arte com essa capacidade! Todas as outras artes o são! Penso que nenhuma forma de arte tem de servir uma mensagem ou estar subjugada a um significado. Não estariamos a ser demasiado injustos e a conter um mar dentro de um copo de água se assim pensássemos? ;)

A música é dos meus prazeres preferidos mas quando se trata de artes as regras são iguais para todas, e a regra maior é não haver regras!

Beijinhos

José Magalhães disse...

Gostei muito deste teu texto. Partilho por inteiro a tua visão sobre a música. Quanto ao comentário anterior, eu advogo no sentido do lugar primordial da música. Um dos motivos seria puramente biológico: o sentido da audição é o primeiro a desenvolver-se no ser humano, e é o mais fino no desenvolvimento das noções de sequência e de tempo. Sem estas noções está comprometida a capacidade de entender significados, comunicação, mensagem etc. Depois, toda a linguagem e comunicação não pode existir sem afectos, amor e relações de empatia. E a música é o melhor meio de exprimir o espírito da sensualidade.

Kierkegaard tem sobre esta questão uma reflexão interessante em "Estádios Eróticos Imediatos" que desenvolve na forma de comentário à ópera Don Giovanni de Mozart:

"The most abstract ideia conceivable is the spirit of sensuality. But in what medium can it be represented? Only in music.
It cannot be represented in sculpturem for in itself it is a kind of quality of inwardness. It cannot be painted, for it cannot be grasped in fixed contours, it is a energy, a storm, impatience, passion, and so on, in all their lyrical quality, existing not in a single moment but in a succession of moments, (...) it is not an epic, for it has not reached the level of words; it moves constantly in an immediacy. Nor can it be represented, therefore, in poetry. The only medium that can represent it is music. For music has an element of time in it yet it does not lapse in time"

Também Shidartha Gautama obteve a sua iluminação quando ouviu o som do rio a correr e nunca mais deixou de estar sintonizado com aquele rio. As pessoas iam ter com ele, aquele que mais tarde seria conhecido como Buda, e ele levava-os de uma margem para a outra, muitas das vezes sem saberem que estavam perante quem procuravam.

Nick Drake, esse cantor que morreu jovem tem uma música deliciosa chamada "The River Man":

Gonna see the river man
Gonna tell him all I can
'bout the ban
On feeling free.

If he tells me all he knows
About the way his river flows
I don't suppose
It's meant for me.

Oh, how they come and go
Oh, how they come and go

Unknown disse...

Obrigado pelo óptimo contributo, Joe.