quarta-feira, 15 de outubro de 2008

As trevas da alma


Lembro-me como se fosse hoje, mas já foi há mais de 20 anos. Entrei na sala de cinema, num Cine-Teatro outrora majestoso e na altura decadente, e fiquei agarrado à cadeira logo nos primeiros 10 minutos de filme. Era um jovem saído da adolescência e não estava preparado para o impacto emocional que foi ver, em ecrã gigante e numa sala quase vazia, um monumento chamado "Apocalypse Now". Não vou discorrer banalidades sobre uma obra-prima já milhentas vezes comentada por críticos de cinema e historiadores. Mas a história do cinema também é feita das estórias vivenciadas pelos espectadores. E ver o filme de Francis Ford Coppola foi uma dessas fortes experiências. É o filme mais denso e complexo sobre a guerra e suas motivações, mas é também um filme sobre o espírito humano e suas derivações maléficas, ou não fosse inspirado no livro "O Coração das Trevas" de Joseph Conrad. A viagem do Capitão Willard (espantoso Martin Sheen) pelo coração da selva do Vietname à procura do Coronel Kurtz (espantoso Marlon Brando), é uma viagem de expiação e de sacrifício.
Há dezenas de cenas e sequências que poderiam ser abordadas (e não se resumem ao célebre ataque de helicópteros ao som de Wagner), mas o início do filme é especialmente prodigioso, uma conjugação perfeita entre som e imagem. Aliás, é quanto a mim, um dos mais intensos inícios de filme jamais concebidos (7 minutos): o arranque do filme sem créditos, plano fixo das selva, silêncio primeiro, ruído das pás dos helicópteros depois, fumo que surge paulatinamente, voz de Jim Morrison a cantar "This is the End" ao mesmo tempo que vemos explosões de napalm. De seguida, surge o capitão Willard (Sheen) "à espera em Saigão". O desespero patente no rosto de Willard manifesta total desorientação mental e emocional - gestos descoordenados, olhar alienado, bebida e cigarros a rodos, a música dos Doors cada vez mais intensa e poderosa, a voz off de Martin Sheen (uma das mais impactantes vozes off de sempre), a deambulação pelo quarto.
De repente, Willard dá um murro no espelho, corta-se, contempla a sua mão ensanguentada, rebola pela cama em choro desesperado, enquanto a música atinge o clímax de intensidade. O incrível é que toda esta intensa sequência foi a última a ser filmada por Coppola (apesar de abrir o filme) e Martin Sheen encontrava-se, na realidade, à beira do total esgotamento emocional. O que vemos nesta sequência não estava no guião, foi toda improvisada e factual - Sheen não estava a representar, estava realmente a viver aqueles momentos de total desnorte emocional (como que a ressacar de toda a angústia por que passara ao encarnar a personagem Willard). Os assistentes do realizador quiseram interromper as filmagens temendo pela saúde de Martin Sheen, mas Coppola não autorizou. E o resultado é deveras pungente, mais a mais, sabendo que Sheen teve um ataque cardíaco no meio das tempestuosas filmagens.
Quando Francis for Coppola apresentou "Apocalypse Now" no festival de Cannes, disse isto (derivado dos terríveis problemas por que passou nas filmagens): "Este filme não é sobre o inferno do Vietname, este filme é o próprio inferno do Vietname". Ao revê-lo com a mesma ansiedade da primeira vez, percebemos porquê. E nem é preciso visionar o filme todo, basta ver estes primeiros 7 minutos de início de peregrinação às trevas da alma:

(fica muito por dizer das personagens de Marlon Brando, Dennis Hopper e Robert Duvall)

9 comentários:

Miriam disse...

Aqui no Brasil, a revista Veja está oferecendo aos seus assinantes uma coleção (50) dos melhores filmes de todos os tempos. E "Apocalypse Now" está entre eles. Eu tinha assistido no cinema em seu lançamento aqui no Brasil. Lembro-me que fiquei muito impressionada, mas agora recebendo o filme junto com a revista pude revê-lo. Está cena que você postou é incrível e ao som de Pink Floyd, torna-se ainda mais interessante e resgata uma época que foi vivida por mim, intensamente.
Beijos

Miriam disse...

Opa, um equivoca meu. A música é do The Doors " The End.

Miriam disse...

Opa, um equivoca meu. A música é do The Doors " The End.

Unknown disse...

Só uma correcção, Miriam: o som é dos Doors e não dos Pink Floyd.
VA

Jacques disse...

Victor, Apocalypse Now de fato não é sobre o Vietnã, mas nenhum filme trata dos horrores da guerra como este. Especificamente sobre o Vietnã, há 2 espetaculares - Corações e Mentes e Johnny Vai à Guerra. Quanto a Marlon Brando citando T.S. Elliot é um dos momentos mais fortes da história do cinema.

Luís A. disse...

e eu lembro-me de o rever ha 5 anos no são jorge na versão redux....é só a melhor experiencia que alguma vez tive num cinema. brutal!!

Anónimo disse...

Gosto muito do novo visual :)

SLG

::Andre:: disse...

Nunca vi...

Maria disse...

Também me recordo da primeira vez em que vi o 'Apocalipse Now' e de ficar em choque com a genialidade meticulosa e perfeita do início do filme. Ainda hoje é impossível ficar imune.
Muito possivelmente, acaba por funcionar como um clímax antecipado, que ressurge com a tortura de Willard e a convivência com Kurtz. Também ela de ficar anestesiado.